Um inusitado pacote anti-violência

24 de janeiro de 2008

Num certo país da América do Sul, a sucessão de crimes e violência tornara-se insuportável: os freqüentes casos de homicídio, tráfico de drogas, roubos, corrupção, o surgimento de um “estado paralelo do crime” etc., tudo sugeria e pretextava a edição de leis penais cada vez mais duras: editou-se uma lei de crimes hediondos, que punia gravemente as infrações penais; ampliou-se, mais tarde, o rol dos delitos assim rotulados; agravaram-se as penas; criaram-se novos presídios; mutilaram-se garantais individuais; e, como a Constituição daquele país não admitia a tortura, nem a pena de morte, torturava-se e matava-se clandestinamente, por meio de grupos militares, paramilitares ou simplesmente ignorando a ação de “justiceiros”; tudo em nome da “segurança pública”.

A superprodução de leis penais chegou a tal ponto que praticamente tudo naquele país passara a ser proibido: vender cigarro de maconha, tráfico de droga; atropelar planta ornamental, assim como abater um sapo ou uma aranha, crime ambiental. Apesar da repressão legal e ilegal ao crime, a violência só aumentava e recrudescia, tanto que as pessoas passaram a fazer de suas casas autênticas fortalezas como forma de se protegerem, e grandes empresas lucravam com a “indústria do medo”. Não bastasse isso, os presídios superlotavam: em condições degradantes, presos continuavam delinqüindo nas prisões; amotinavam; matavam outros presos; evadiam; as prisões não ressocializavam, dessocializavam; formavam criminosos mais e mais perigosos, constituindo verdadeiras escolas da criminalidade.

Foi neste contexto, e depois do fracasso de diversos outros ministros considerados linha dura, que Setembrino, um ex-monge, fora chamado a assumir o posto de “super-ministro” incumbido de dar cabo à criminalidade naquele país; sua receita anti-violência, pelo inusitado, fora considerada coisa de lunático e fadada ao absoluto insucesso; mas surpreendentemente a criminalidade cairia sensivelmente. É certo que, antes de tomar qualquer providência, Setembrino visitou os bairros mais castigados pela violência; entrevistou pessoas, especialistas inclusive, freqüentou presídios: quis saber o porquê de tanto roubo, de tanta morte, de tanta droga; percebeu, então, que cada um tinha, a seu modo, suas próprias razões; não os achou nem melhores nem piores do que todas as pessoas com as quais convivia. Então, numa certa manhã em que refletira longamente, baixou decreto anti-violência, afinal conhecido como os “dez mandamentos de Setembrino”, cujo lema era “reagir à violência com a não-violência”, pois privilegiava e preferia a inteligência à força, a prevenção à repressão. Ei-lo:

  1. Decreto a extinção de todas as Polícias, assim Civil como Militar, e instituo a Polícia Democrática, encarregada de servir e proteger o cidadão, criminosos e não criminosos, suspeitos e não suspeitos, culpados e inocentes, formada segundo as garantias constitucionais e que será informada pela absoluta transparência de seus atos e absoluto respeito à dignidade da pessoa humana; e estará vinculada diretamente ao Ministério Público;

  2. Decreto que nenhum servidor público fará uso de arma de fogo, salvo nas operações de absoluta necessidade de proteção própria ou alheia.

  3. Decreto a abolição da repressão ao tráfico ilícito de drogas e à contravenção do “jogo do bicho”.

  4. Decreto que essas drogas terão o mesmo tratamento legal das drogas lícitas (álcool, remédios etc.), as quais serão produzidas e vendidas pelos laboratórios e drogarias credenciadas e estarão sujeitas a pesados tributos.

  5. Decreto que “o jogo do bicho” será explorado por instituição oficial credenciada (Caixa Econômica);

  6. Decreto que todos os recursos arrecadados com essas novas atividades serão destinados exclusivamente, nos bairros mais carentes das cidades, à criação de hospitais e postos médicos, clínicas de tratamento a dependentes de droga, escolas públicas, espaços de lazer, programas de geração de emprego e indenização de vítimas de crime;

  7. Decreto que somente serão considerados criminosos atos violentos contra pessoas que não possam se defender, a exemplo do homicídio, da tortura, do roubo, do seqüestro, do estupro, da apropriação e desvio de dinheiro público, sendo abolidos todos os crimes inúteis, como a casa de prostituição e semelhantes.

  8. Decreto que todos os servidores públicos, sem exceção, especialmente os agentes da segurança pública, deverão prestar contas de seus atos de forma regular, publicamente;

  9. Decreto que em todos os veículos e repartições públicas constará, de forma destacada, o número (0800) das corregedorias e ouvidorias a que todo cidadão poderá se reportar sempre que souber de qualquer abuso ou violação a direitos;

  10. Decreto que todo servidor público que vier a cometer qualquer ato de violência arbitrária ou corrupção será automaticamente afastado da atividade, até o final da apuração respectiva, quando o será definitivamente, se for condenado.

Paulo de Souza Queiroz: doutor em Direito (PUC/SP), é Procurador Regional da República, Professor do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB) e autor do livro Direito Penal, parte geral, S. Paulo, Saraiva, 3ª edição, 2006.
Sítio: pauloqueiroz.net

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4 Comentários

  1. Estou cursando Direito e meu professor de Criminologia nos falou de seus artigos e pediu para ler este acima. Fantástico parece os dez mandamentos sem alguns moralismos que não concordo. Pena que com essa nossa Câmara e Senado onde mais de um terço representam traficantes, contrabanditas e lobbistas, nossos dez mandamentos terão que ser usados por cada um de nós que pensa uma sociedade justa. Obrigada.

  2. Sr paulo de queiroz muito bom este artigo,parabens!Mas no brasil com a oligaquia mandando e desmandando ditando regras e comportamentos seria impossível,o único caminho seria o socialismo!

  3. Prof Paulo, seus artigos são fantásticos! Parabéns. Pena que a Camara e o Senado não possuem pessoas instruídas para seu comando. Talvez se assim o fosse teríamos uma sociedade menos cruel e menos criminosa! Seus artigos são de grande valia!

  4. Muito boa essa…
    A polícia vinculada ao MP – como nós já não tivéssemos inflências políticas suficientes no exercício das nossas funções.
    O MP, que deveria exercer o controle da polícia, é, em todo o Brasil, palco das maiores arbitrariedades contra policiais que fazem seu serviço de forma correta.
    Seduzidos pelo poder e pela política, não raro promotores de justiça perseguem delegados e contra eles requisitam a instauração de processos disciplinares nas corregedorias de maneira completamente estapafúrdia, sem sequer averiguar um dado sequer.
    A coisa mais fácil DO MUNDO é acabar com a carreira de um delegado, basta ir ao primeiro promotor e dizer: doutor, meu filho confessou e está preso porque o delegado torturou ele. PRONTO!
    Ao que me parece, a sanha do estrelato, o carreirismo, a vaidade e o capricho inflamam a vontade de muitos membros do parquet a construir suas “histórias profissionais” às custas da destruição da reputação e do trabalho dos delegados de polícia.
    O que falta ao MP, em minha opinião, é mais vontade de trabalhar pelo população e de ajuizar as ações civis públicas que poderiam mudar a cara do país como um todo! A começar pelas delegacias.
    Os membros do MP ganham mais de 20 mil, trabalham quando querem, estão sujeitos a um pseudo-controle de suas atividades, andam pra cima e pra baixo em carros oficiais e são tratados como se fossem reis. Não pedem, requisitam! Não cobram, mandam!
    Nós da polícia trabalhamos 24 horas por dia e 7 dias por semana, no limite, cercados de deficiências – muitas das quais Vossas Excelências fingem que não veem e que nada podem fazer….
    A cara do Estado, boa ou má, somos nós, não vocês!
    É fácil falar mal dos delegados. Díficil é ser um!
    E vê se cai na real!

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