Sobre os limites da interpretação

14 de novembro de 2007

Atualmente parece não haver dúvida de que, por maior que seja a exatidão de um texto legal, é sempre possível interpretá-lo de várias formas, em virtude do caráter estruturalmente aberto da linguagem e, pois, dos conceitos jurídicos. Há quem afirme inclusive que as possibilidades de interpretação são infinitas (Derrida, Umberto Eco). Mas isso significa que qualquer interpretação é válida? Existem limites à interpretação?

Parece-nos que tais limites existem ou devem existir realmente1. Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que há interpretações erradas, isto é, tecnicamente incorretas. Exemplo disso são as que se fundam em leis já revogadas como se ainda estivessem em vigor; as que desconhecem a legislação específica; as que supõem cálculos matemáticos incorretos, relativamente à prescrição, decadência, prazos recursais etc.; as que se baseiam numa leitura equivocada do texto; as tomadas por juízes evidentemente incompetentes; as que contrariam princípios e regras por desconhecimento; as que encerram contradição insuperável, entre outras.

Mas que dizer da interpretação tomada conscientemente e sem erros técnicos? Pode um juiz deixar de condenar alguém por crime contra a liberdade sexual por julgar que a vítima, por ser prostituta ou homossexual, não é passível de proteção jurídica? É sustentável ainda, como no passado, que mulher casada não pode ser vítima de estupro praticado pelo marido, em razão dos deveres do casamento? Policiais podem matar fora dos casos legalmente admitidos?

Temos que, seja qual for o rótulo que se associe a cada comportamento (prostituta, homossexual etc.), toda pessoa humana, independentemente de qualquer outra qualidade, tem direito de ser respeitada enquanto tal, fazendo por isso jus à proteção da vida, da honra e da liberdade em toda e qualquer circunstância, motivo pelo qual o juiz não pode negar proteção à prostituta, ao homossexual ou à mulher casada sob nenhum pretexto.

Pela mesma razão, não se pode considerar legítima a ação de policiais que torturam e matam supostos criminosos fora dos casos legalmente autorizados (legítima defesa) em nome da segurança pública ou semelhante, porque do contrário não existirá diferença alguma entre policiais e criminosos, entre lícito e ilícito, entre o direito e o torto.

Não obstante isso, devemos reconhecer que, por mais que consideremos determinadas decisões como incorretas, absurdas ou inaceitáveis, uma coisa parece certa: os limites da interpretação constituem também uma interpretação, afinal a afirmação de que uma dada sentença é incorreta, absurda ou inaceitável encerra igualmente uma interpretação.

Naturalmente que a interpretação a predominar ou predominante não é necessariamente a melhor, porque tal implica uma manifestação de poder, motivo pelo qual prevalecerá a de quem (pessoa, órgão ou instituição) tiver atribuição legal (poder) para a impor ou institucionalizar, podendo inclusive ser a mais arbitrária dentre as possíveis.

Paulo Queiroz.

Website:pauloqueiroz.net

1Nesse sentido, Umberto Eco: dizer que um texto é potencialmente sem fim não significa que todo ato de interpretação possa ter um final feliz. Até mesmo o desconstrucionismo mais radical aceita a idéia de que existem interpretações clamorosamente inaceitáveis. Isso significa que o texto interpretado impõe restrições a seus intérpretes. Os limites da interpretação coincidem com os direitos do texto, o que não quer dizer que coincidem com os direitos do seu autor. Os limites da interpretação. S. Paulo: editora perspectiva, 2000, p. XXII.

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3 Comentários

  1. Penso que toda a ação humana é interpretativa, pois tudo é escolha e opção, e antes de tudo subjetiva. Talvez por isso na hieraquia dos tribunais judiciários, começamos pelos juízes monocráticos(mais passíveis de erro) até tribunais complexos, ressaltando que apesar disso, todos os tribunais erram e vão errar.
    Delmas-Marty, uma jurista francesa, tratando da emancipação dos juízes nacionais na internacionalização do direito afirma a imprecisão do direito como o poder de reforçar a sua margem de interpretação, visto que tratada no âmbito do direito internacional, essa imprecisão visa uma melhor adequação do direito em determinada região frente seus costumes e cultura. Em geral, considero essa imprecisão desnecessária, logicamente no âmbito nacional, porém também no âmbito internacional. Se afirmar que a abertura de margem para interpretação é necessária, é o mesmo que afirmar a ineficácia de tais normas. “Sobre aquilo que não se pode falar é melhor se calar” Wittgenstein.
    Outro abraço, Pedro.

  2. Melhor que interpretar textos é compreender e interpretar fatos. E a melhor interpretação que um fato pode receber é aquela dada pelo pai no instante que ele surpreende um digno humano estuprando sua pequena e digna filha.

    Daí o humano e digno pai respeita o digno humano estuprador e não faz nada, afinal, o estuprador tem dignidade humana, e tem que aplicar a lei. A LEI. A – LEEE – IIIII. Viu?

    Da mesma sorte o digno policial, obrigado pela lei e pelo serviço e pela necessidade de pôr o pão na mesa, toma tiro, vê o colega ser morto ao seu lado, mas daí o digno malfeitor se entrega e o policial se reveste de sangue de barata e nada faz, pois o malfeitor tem dignidade humana. Olha que bonito?

    Só não disseram, por exemplo, para a HIV e para uma enormidade de outras enfermidades que as pessoas tem dignidade humana e não podem ser afligidas quando não respeitarem limites morais antigos e naturais, entre outras compreensões e interpretações de fatos, que podem vir a ser escritos e aí tudo vira interpretação de texto.

    Eis aí a minha interpretação – art. 5º, IV, da CF/88.

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