Seriam as leis inúteis?

5 de junho de 2005

Dentre as muitas ilusões que nós, operadores do direito, alimentamos, está supor que boas leis implicam, necessariamente, um bom direito ou que leis democráticas importam sempre em um direito democrático, suposição que confunde direito legislado e direito praticado, discurso e realidade, teoria e práxis.

No entanto, apesar da importância do direito legislado, leis, sejam constitucionais, sejam infraconstitucionais, são com freqüência inócuas, pois rigorosamente falando o Direito não existe, porque, “aquilo que uma teoria do direito objetiva como Direito”, são palavras de François Ewald, “como natureza do direito, como essência do direito, não tem existência real. O Direito – demos-lhe maiúsculas – não existe. Ou antes, não existe a não ser como um nome que reenvia a um objeto, mas serve para designar uma multiplicidade de objetos históricos possíveis – que, como realidades, não têm os mesmos atributos, e que podem mesmo ter atributos irredutíveis”1 , de sorte que, assim como não há fenômenos morais, mas apenas interpretação moral dos fenômenos (Nietzsche), tampouco há fenômenos jurídicos, mas só interpretação jurídica dos fenômenos, pois nada é onticamente jurídico, lícito ou ilícito, mas socialmente construído2 .

Conclusivamente, ele é o que dissermos que é, porque o direito, como de resto tudo que diz respeito ao homem, não está no fato ou na norma em si, mas na cabeça das pessoas, de modo que podemos afirmar, parafraseando o evangelho (Lucas, 17:21), que o reino do direito está dentro de nós, e que nós o criamos e recriamos permanentemente, dando-lhe distintos significados a cada momento de sua produção segundo um dado contexto histórico-cultural. Daí que o direito, como o poder, não é uma coisa, mas relações/interações/interpretações, ou seja, “é algo que se exerce, que se efetua, que funciona como uma maquina social que não está situada em um lugar privilegiado ou exclusivo, mas se dissemina por toda a estrutura social”3 . Constitui, portanto, uma simplificação grosseira supor que o Estado seja a única fonte de direito ou que o direito se esgote no direito legislado, já que cada um carrega dentro de si seus micro-sistemas jurídicos, que faz ou tenta fazer prevalecer nos seus espaços de interação/exercício de poder: para uns o direito é uma pequena igreja, para outros, um capítulo da moral, para outros, um momento da política etc.

Partindo desse ponto de vista, seria mais correto falar, inclusive, de “direitos”, tantas são as possibilidades de sua produção, donde se concluir que o fundamental não são as leis, mas os homens que as fazem e as interpretam. E se, como dito, as leis são grandemente inócuas, deveríamos ter um catálogo mínimo de leis, preferencialmente leis principiológicas, de modo que tão importante quanto um direito penal mínimo é um direito constitucional mínimo, um direito do trabalho mínimo, um direito processual mínimo, pois multiplicar leis significa, antes de tudo, multiplicar violações à lei, e não o seu cumprimento. Ademais, não podemos esperar das leis o que elas não nos podem oferecer, como se ocultassem algo de mágico e pudessem produzir algum milagre.

Exemplo frisante de quão inúteis podem ser as leis, mesmo quando assumam caráter constitucional, principiológico e garantista, a demonstrar, definitivamente, que o direito, e, pois, o não-direito, o lícito e o ilícito, é o que dissermos que ele é, foi-nos dado pelo decreto 5.144, de 16 de julho de 2004, que, a pretexto, e só a pretexto, de regulamentar os §§ 1° e 2° do art. 303 da Lei 7.565, de 19 de dezembro de 1986 (Código Brasileiro de Aeronáutica), previu a destruição de aeronaves “hostis ou suspeitas de tráfico de substâncias entorpecentes e drogas afins”, vale dizer, instituiu, entre nós, a pena de morte por juízo de exceção, implicando, por isso, a violação sistemática de vários princípios constitucionais (CF, art. 4° e 5°): a) inviolabilidade da vida (art. 5°, caput); b) proibição da pena de morte em tempo de paz (art. 5°, XLVII, a); c) presunção de inocência (art. 5°, LVII); d) proibição de juízo ou tribunal de exceção (art. 5°, XXXVII, a); e) devido processo legal (art. 5°); f) prevalência dos direitos humanos (art. 4°, II); g) defesa da paz (art. 4°, VI); h) solução pacífica dos conflitos (art. 4°, VII); i) repúdio ao terrorismo (art. 4°, VII); j) legalidade; l) proporcionalidade; m) inviolabilidade da propriedade (art. 5°, caput). Nota: apreciando petição que argüia inconstitucionalidade do aludido Decreto, o Procurador Geral da República, contrariamente, assinalou que “a medida de destruição não guarda relação com a pena de morte. Aliás, sequer pode ser considerada uma penalidade, porquanto não se busca, com sua aplicação, a expiação por crime cometido. Em realidade constitui, essencialmente, medida de segurança, extrema e excepcional, que só reclama aplicação na hipótese de ineficácia das medidas coercitivas precedentes. É importante frisar que tal medida tem por objeto a preservação da segurança nacional e a defesa do espaço aéreo brasileiro”.

Com a edição do decreto, sabemos, agora, que a pena de morte, que sempre existiu entre nós informalmente, passou a contar com o apoio oficial explícito, tudo a revelar quão violento e antidemocrático pode ser o “direito democrático”, criado que é à nossa imagem e semelhança, e, pois, expressão fiel dos nossos micro-sistemas jurídicos.

Ontem, como hoje, portanto, o decisivo não é a lei, mas o homem!

Paulo Queiroz é Prof. do UniCEUB, Procurador Regional da República, autor do livro Direito Penal–Parte Geral, Saraiva, 2005.


Notas de rodapé convertidas1. Foucault, a Norma e o Direito, p. 160, Vega, Lisboa, 1993.2. Como afirma Calmon de Passos, o Direito “enquanto apenas formulação teórica, enunciado normativo, proposição ou juízo, ainda não é o Direito”, pois “o Direito é o que dele faz o processo de sua produção. Isso nos adverte de que nunca é algo dado, pronto, pré-estabelecido ou pré-produzido, cuja aplicação é possível mediante simples utilização de determinadas técnicas e instrumentos, com segura previsão das conseqüências”, razão pela qual “O Direito, em verdade, é produzido a cada ato de sua produção, concretiza-se com sua aplicação e somente é enquanto está sendo produzido ou aplicado”, Direito, Poder, Justiça e Processo, p. 67/68, Ed. Forense, Rio, 1999.3. Roberto Machado, por uma genealogia do poder, p. XIV, introdução a Microfísica do Poder, de Michel Foucault, Rio de Janeiro, Graal, 1995.

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