Quem ama não mata? Réplica de Paulo V. Jacobina

14 de junho de 2012

Por Paulo Vasconcelos Jacobina, Procurador Regional da República, Mestre em Direito Econômico

Envolvi-me nesta discussão, com um colega preparadíssimo, professor de direito penal, sobre o slogan “quem ama não mata”, a respeito de um recente crime passional que abalou o país. Ele defendia, naquela oportunidade, que o slogan estaria errado, porque todo amor envolve possessão, desejo de exclusividade, e que, portanto, é indissociável de um egoísmo travestido de grandeza – declaramos desejar o melhor para o outro, mas na verdade reservamo-nos o direito de decidir o que seria isto que é o melhor para o outro.

Sob o manto do altruísmo, dizia ele, pode-se chegar mesmo a partilhar o próprio parceiro numa orgia, mas mesmo tal compartilhamento se dá no limite do que seria previamente conhecido, deliberado e permitido por mim. O amor, diz ele, nos faz todos, ao menos potencialmente, possessivos, neuróticos, violentos, enfim, uma pessoa que ama é uma pessoa perigosa, ainda que, na maioria das vezes, tal perigo se expresse apenas na forma de destruições simbólicas ou imaginárias, como o divórcio, o desprezo ou nas mais distintas formas de ferir ou matar- não excluídas as que envolvem violência física.

Assim, meu interlocutor conclui que quem ama mata, sim, e mata por amor.

Concordo que o divórcio é desamor; também o são o desprezo e a agressão física. Mas das expressões de desamor não se pode concluir a periculosidade dos que amam. A menos que eu defina o amor como uma relação egoística de busca de poder sobre o outro, no campo sexual,travestida de altruísmo, como faz o professor com quem eu conversava. Mas será que isto é amor de fato?

Há,aí, um violento empobrecimento do termo. Confunde-se amor com libido. Nem sequer se chega, nesta noção, à consideração do amor erótico, aquele que vê, na contemplação e união física como outro um caminho de êxtase, no sentido mais estrito da palavra –ex-tasis, o sair de si. Eros vê o outro e o deseja, mas de fato deseja o outro naquilo que o outro é. A libido vê o outro e deseja apenas a sensação corporal que o outro, como objeto de prazer sensorial, pode proporcionar. O eros é extático, a libido é encrática, vale dizer, conduz ao ensimesmar-se, ao egoísmo, à autossatisfação. O eros relaciona-se. A libido apenas masturba-se,anda que ao lado de outro, ou de outros, um solitário mesmo em meio a uma orgia, para usar a mesma imagem extrema que o meu professor de direito penal usou.

O mero libidinoso é um cínico, porque aproxima-se do outro apenas para tomá-lo como objeto para si, nunca para desejá-lo como pessoa. Libido não é amor, é apetite. Se libido fosse amor,invejaríamos os cães: a cadela deixa o sinal irresistível da sua disponibilidade sexual, os cachorros lutam entre si pela sua posse e o mais forte a submete.

Sei que às vezes alguns de nós invejam de fato os cães, porque os julgam mais verdadeiros e simples do que nós. Esta postura também não é nova: era conhecida, na Grécia antiga, como “cinismo”. Ou seja, esta era a filosofia dos que invejavam a simplicidade e a sinceridade dos cães, comparada com o que viam como a “hipocrisia” humana, e escolhiam viver como os animais. Para estes, o amor, no seu único estado verdadeiro, nada mais é do que a fêmea que emite sinais de disponibilidade, a luta entre os machos pelo predomínio do poder e a corte que visa a posse sexual. Tudo o que passa daí é encobrimento, fingimento, farsa humana fantasiada de altruísmo.

A hipocrisia humana existe. O fingimento canino, não. Um cão macho, perante o cheiro de uma cadela em cio, pode apenas exercitar sua libido. Desconhecem-se cães ascetas. Mas dizer que amor é apenas aquilo que fazem os cães é desconhecer que entre cães e pessoas há pelo uma diferença ao menos que é inegável: pessoas podem escolher viver como cães. Cães não podem escolher viver como pessoas. Há algo no ser humano que supera o cão, nem que seja a capacidade de refletir sobre a diferença entre uns e outros.

Note-se que nem falo, aqui, do amor abnegado das pessoas que consomem sua vida na caridade ou na oração, dos que sacrificam suas vidas por desconhecidos, dos que morrem em silêncio pelo outro. Ou pelo amor de Deus. Se nem saímos da libido para chegar no eros, como poderíamos falar de ágape?

Há algo no ser humano que supera infinitamente o ser humano, diz Pascal. Certamente este algo também supera infinitamente o cão. O cínico, no entanto, escolhe eliminar de si a possibilidade de enxergar o que é especificamente humano, ao fazer do cão seu padrão de julgamento. Ao eliminar do seu campo de visão tudo o que é verdadeiramente humano, elimina também a possibilidade de observar quantos seres humanos há que vivem, em silêncio, a sua autodoação pelo bem do outro. Vivendo o amor. Porque a verdadeira autodoação é silenciosa, e não faz propaganda de si, ou já não é autodoação,mas autopromoção.

O problema é que só quem ama pode ver o amor: eis o mistério da fé. Quem não ama às vezes proclama que o amor não existe, porque só conhece a libido. Mas aquele que se cega voluntariamente não tem direito de dizer que a luz não existe.

Não é o amor que torna as pessoas perigosas, meu querido professor penalista. Na verdade, só o amor as liberta. A falta de amor torna-nos cegos e cínicos, quer dizer, apenas cães libidinosos. E aos cães cabe a coleira.

Quem ama de verdade não mata, embora às vezes morra. Este é o risco do amor, mas é um risco livremente assumido. Ressalto, porém, que nem todo aquele que declara amor ama de fato. Os que renunciam voluntariamente a conhecer o amor ficam, no entanto, tolos, e tomam por amor a mais vulgar declaração, uma contrafação,uma “nota de três reais”, que só ilude a quem jamais conheceu as notas verdadeiras.

Os que mentem sobre o amor, declarando-o falsamente, às vezes enganam os tolos com seu cheiro irresistível de libido, e, possivelmente, até os matam. Mas os que realmente conhecem o amor não somente não mentem sobre ele, quanto também mais dificilmente se deixam enganar por quem mente. Podem até morrer por amor, mas dificilmente o fazem por inadvertência. Porque o amor os liberta para amar até o fim.

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8 Comentários

  1. Vou treplicar o ilustre Paulo Jacobina com uma citação de Nietzsche (CREPÚSCULO DOS ÍDOLOS):

    Aniquilar as paixões e os desejos apenas para evitar sua estupidez e as desagradáveis consequências de sua estupidez, isso nos parece, hoje, uma forma aguda de estupidez (…). A igreja combate a paixão com a extirpação em todo sentido: sua prática, a “cura”, é o castracionismo. Ela jamais pergunta: “como espiritualizar, embelezar, divinizar um desejo?” – em todas as épocas, ao disciplinar, ela pôs a enfase na erradicação (da sensualidade, do orgulho, da avidez do domínio, da cupidez, da ânsia de vingança). – MAS ATACAR AS PAIXÕES PELA RAIZ SIGNIFICA ATACAR A VIDA PELA RAIZ: A PRÁTICA DA IGREJA É HOSTIL À VIDA…

  2. Para mim, é óbvio que pessoas violentas e não violentas amam igualmente e o amor assume formas muito distintas e pessoais em cada um.
    Além disso, o amor existe (ou não) independentemente do reconhecimento de alguém em particular.

  3. Tenho que a história – de ontem e de hoje – já nos mostrou o bastante sobre o que há de desumano, interessado, impuro e violento nesse amor que se pretende humano, desinteressado, puro e não violento. Não creio que dissimulando ou ignorando as coisas e os interesses que informam as relações humanas de todo tipo nos ajude a tornar o mundo melhor e menos violento. E se pretendermos trabalhar com a ficção e ignorar a realidade nua e crua das relações humanas, basta pensar nas mais belas histórias de amor produzidas pela literatura, pelo cinema etc. Quão insossa seria uma história de amor sem um triângulo amoroso, sem algum suspense, traições e mesmo alguma forma de violência, física ou verbal, imaginária ou simbólica?

  4. É verdade, quem ama não mata. Mas, quem ama cegamente e se frusta, tem esse sentimento convertido em cólera, e as vezes é induzidos à prática de ações violentas, e tais ações não devem ser justificadas por amor, mas, decorrentes de um desamor.

  5. Na minha opinião, existem o amor e o desamor, que são conceitos que só se distinguem quando manifestados em relação a alguém ou mesmo a alguma coisa. Ou seja, são os dois lados de uma mesma moeda de um sentimento intenso expresso em algum momento.

    Também assim a libido, que não está desvinculado de um amor sublimado ou universal (ágape). Basta imaginar a frustração de uma recém casada, que contraiu matrimônio religioso, que em pouco tempo se vê ignorada no leito porque seu marido, por qualquer motivo (trabalho, religião etc.). Poucas coisas fazem a mulher se sentir tão rejeitada, já que foi privada do prazer carnal pelo próprio parceiro que ela escolheu viver o resto da vida.

    Assim como o amor/desamor, a libido/indiferença também fazer parte desse forte sentimento, sendo potenciais quando ainda não manifestados. Assim, todas essas sensações podem, de acordo com as circunstâncias e a experiência vividas, ser um fator motivacional para causar a morte a alguém.

    Finalmente, acho possível ter libido (ou não) em relação a uma pessoa que verdadeiramente ama. O mesmo pode ocorrer (o desejo), por diversas razões, em relação a quem se odeia ou se é indiferente.

    Excelente texto para a reflexão, mas eu acho que esses conceitos foram trabalhados com enfoque eminentemente religioso, já que o conceito filosófico atrelado ao amor (eros) é tratado por platão também com uma faceta da volúpia, como visto em um dos comentários do outro texto “Quem ama, mata?”.

  6. É MUITO IMPORTANTE FALAR SOBRE AMOR, COMPREENDER QUE O AMOR É ESTAR PRESENTE NOS MOMENTOS ALEGRES E TRISTES….É SER PRESENTE NA VIDA DE QUEM AMA,BUSCANDO TRAZER SEMPRE MOMENTOS DE FELICIDADE….

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