Pode o juiz fixar pena abaixo do mínimo legal?

2 de outubro de 2019

De acordo com a doutrina e a jurisprudência dominantes, inclusive do STF1, o juiz não pode fixar pena abaixo do mínimo legal, porque, se o fizer, violará o princípio da legalidade das penas, ainda que esteja presente alguma circunstância atenuante. Nesse sentido, dispõe a Súmula 231 do STJ: “A incidência de circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal.” No caso, todavia, de incidir causa de diminuição (v.g., crime tentado), a pena pode ser fixada aquém do mínimo legal.

O equívoco é manifesto, visto que: a)não é a fixação da pena abaixo do mínimo legal que viola o princípio da legalidade, mas justamente o contrário: a sua não fixação;2b)o compromisso fundamental do juiz não é com a pena mínima (ou máxima), mas com a pena justa, legal e proporcional; c)a Súmula 231 do STJ é incompatível com a reforma da parte geral do CP de 1984, que adotou o sistema trifásico de aplicação da pena e não vedou, ao contrário, obrigou o juiz a atenuar a pena (CP, art. 65).

Temos, inclusive, que mesmo que não incida no caso circunstância atenuante, é possível a aplicação de pena abaixo do mínimo legal sempre que esta for manifestamente desproporcional. Se o juiz entender, por exemplo, num caso de moeda falsa (CP, art. 289, §1°), que é inaplicável o princípio da insignificância (v.g., colocar em circulação uma única cédula de R$ 50,00), não vemos porque não possa fixá-la aquém do mínimo legal, digamos, 6 meses de reclusão (a pena mínima cominada é de 3 anos de reclusão). Só para se ter uma ideia, a pena mínima cominada ao crime de moeda falsa corresponde à pena máxima do homicídio culposo previsto no Código Penal (art. 121, §3°).

Com maior razão, justa, legal e proporcional será a aplicação da pena abaixo do mínimo legal se houver circunstância atenuante em favor do condenado3.

Com efeito, o princípio da legalidade, como de resto todos os princípios penais e processuais penais, constitui autêntica garantia política e jurídica que existe e se justifica, histórica e constitucionalmente, para proteger o acusado contra os excessos do Estado e não para justificar ações arbitrárias contra ele. Por isso é que não há falar de violação ao princípio sempre que a lei tiver de retroagir para beneficiar o réu, por exemplo, pois não há aí ofensa ao caráter garantidor que o informa. Uma garantia penal pode ser invocada a favor do acusado, não contra ele.

Aliás, é precisamente em razão desse caráter garantista do princípio que o contrário não pode acontecer, vale dizer, fixar o juiz a pena acima do máximo legal, exceto nos casos que a lei autoriza (v.g., incidência de causas de aumento de pena etc.).

Além disso, se o juiz pode o mais – absolver, em razão do princípio da insignificância, por exemplo –, há de poder o menos, evidentemente: aplicar pena aquém do mínimo legal.

A súmula 231 do STJ viola, portanto, o princípio duplamente: primeiro, porque ignora o caráter garantidor do princípio da legalidade das penas; segundo, porque ofende a letra da lei, dando-lhe interpretação contra legem, já que o art. 65 do CP dispõe expressamente: “São circunstâncias que sempre atenuam a pena…”. O artigo é, pois, claríssimo quanto à obrigatoriedade da atenuação da pena quando incidir uma ou mais circunstância prevista em lei (confissão espontânea etc.).

A vedação a priori de pena abaixo do mínimo legal importa, ainda, em violação aos princípios de isonomia e individualização, quer porque implica tratar igualmente condenados desiguais, quer porque impede a determinação de uma pena justa e proporcional.

É o que se vê, por exemplo, quando em caso de coautoria ou de participação o juiz aplica pena idêntica para todos, apesar de militar, em favor de um ou mais condenados, diversas circunstâncias atenuantes: confissão espontânea, ser o réu menor de 21 anos na data do crime etc.

No sentido aqui proposto, escreve Cézar Roberto Bitencourt4

O entendimento contrário à redução da pena para aquém do mínimo cominado partia de uma interpretação equivocada, que a dicção do atual art. 65 do Código Penal não autoriza. Com efeito, esse dispositivo determina que as circunstâncias atenuantes “sempre atenuam a pena”, independentemente de já se encontrar no mínimo cominado. É irretocável a afirmação de Carlos Caníbal quando, referindo-se ao art. 65, destaca que “se trata de norma cogente por dispor o Código Penal que ‘são circunstâncias que sempre atenuam a pena’… e — prossegue Caníbal — norma cogente em direito penal é norma de ordem pública, máxime quando se trata de individualização constitucional de pena”. A previsão legal, definitivamente, não deixa qualquer dúvida sobre sua obrigatoriedade, e eventual interpretação diversa viola não apenas o princípio da individualização da pena (tanto no plano legislativo quanto judicial) como também o princípio da legalidade estrita.

O equivocado entendimento de que “circunstância atenuante” não pode levar a pena para aquém do mínimo cominado ao delito partiu de interpretação analógica desautorizada, baseada na proibição que constava no texto original do parágrafo único do art. 48 do Código Penal de 1940, não repetido, destaque-se, na Reforma Penal de 1984 (Lei n. 7.209/84). Ademais, esse dispositivo disciplinava uma causa especial de diminuição de pena — quando o agente quis participar de crime menos grave —, mas impedia que ficasse abaixo do mínimo cominado. De notar que nem mesmo esse diploma revogado (parte geral) estendia tal previsão às circunstâncias atenuantes, ao contrário do que entendeu a interpretação posterior à sua revogação. Lúcido, também nesse sentido, o magistério de Caníbal quando afirma: “É que estes posicionamentos respeitáveis estão, todos, embasados na orientação doutrinária e jurisprudencial anterior à reforma penal de 1984 que suprimiu o único dispositivo que a vedava, por extensão — e só por extensão — engendrada por orientação hermenêutica, que a atenuação da pena por incidência de atenuante não pudesse vir para aquém do mínimo. Isto é, se está raciocinando com base em direito não mais positivo”.

Assim também Júlio Fabbrini Mirabete e Renato Fabbrini5, Rogério Greco6, Juarez Cirino dos Santos7, Andrei Schmidt8, Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini9, Fábio Roque Araújo10 etc.

De fato, como demonstra Carlos Roberto Lofego Caníbal11, antes ou depois da reforma de 1984, não havia qualquer vedação à aplicação da pena aquém do mínimo, exceção feita à atenuação especial de pena do Código de 1940. A súmula 231 do STJ está, por conseguinte, fundada numa interpretação equivocada.

As circunstâncias atenuantes eram previstas no artigo 48 do CP de 1940, cujo parágrafo único, que tinha por título Atenuação especial da pena, dispunha: “Se o agente quis participar de crime menos grave, a pena é diminuída de um terço até metade, não podendo, porém, ser inferior ao mínimo da cominada ao crime cometido”.

Como se vê, não existia proibição de a pena ser aplicada abaixo do mínimo legal quando incidisse circunstância atenuante. O que o Código de 1940 vedava era a fixação da pena aquém do mínimo legal no caso de participação dolosamente diversa, atualmente prevista no artigo 29, §2°, do CP.

Além disso, com a reforma de 1984, a atenuação especial do Código de 1940 passou a figurar no artigo 29, §2°, do CP, não mais como circunstância atenuante especial, mas como uma questão de imputação do tipo doloso (participação dolosamente diversa).

Por fim, como o STF e o STJ12 admitem, em relação ao crime do art. 273 do CP, que comina pena de 10 a 15 anos reclusão, a aplicação da Lei n° 11.343/2006, que prevê reclusão de 5 a 15 anos para o tráfico de drogas, a fim de afastar a pena mínima cominada pelo artigo 273 do CP, por ser manifestamente desproporcional, também por isso é justo superar a Súmula 231 do STJ, mantendo-se um mínimo de coerência.

1RE 660537 AgR, Relator(a): Min. Luiz Fuz, primeira turma, julgado em 12/08/2014, acórdão eletrônico DJe-164 divulg 25-08-2014 Public 26-08-2014.

2Esse é o argumento principal dos autores que, como Damásio de Jesus (“O juiz pode, em face das circunstâncias atenuantes genéricas, fixar a pena aquém do mínimo legal abstrato?”, in Boletim do IBCCrim, nº 73, São Paulo, 2003), são contrários à possibilidade de as circunstâncias atenuantes reduzirem a pena abaixo do mínimo legal.

3Não sem razão, há quem proponha a abolição pura e simples da pena mínima. Nesse sentido, Ferrajoli (Derecho y razón, cit., p. 400), Edson O’Dwyer (“Se eu fosse juiz criminal”, in Boletim do IBCCrim, nº 86, São Paulo, jan. 2000) e Salo de Carvalho (Pena e garantias, cit.).

4Tratado de direito penal : parte geral. 23ª. ed. rev., ampl. e atual. – São Paulo : Saraiva, 2017.

5Manual de direito penal. Parte geral. São Paulo: Atlas, 2016, p.304.

6Greco, Rogério. Código Penal Comentado. 12ª edição. rev. ampl. e atual. Niterói, RJ, 2018.

7Direito penal. Parte geral. Florianópolis: 2018, p.593/594.

8O princípio da legalidade penal no estado democrático de direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2001, p. 301-307.

9Curso de direito penal. Salvador: juspodivmeditora, 2015, p.515.

10Curso de direito penal. Parte geral. Salvador: juspodivm, 2018, p.900.

11Pena aquém do mínimo. Uma investigação constitucional penal. Revista da Ajuris, Ano XXVI, n° 77, março de 2000.

12Nesse sentido, STJ: AI no HC 239.363/PR, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, CORTE ESPECIAL, julgado em 26/02/2015, DJe 10/04/2015.

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