O que é bom?
Bom é tudo que interpretamos como tal: comer uma boa comida, receber uma boa notícia, fazer um bom negócio. O contrário é mau: comer uma má comida, receber uma má notícia, fazer um mau negócio.
Mas, se bom é tudo que interpretamos como tal, então a bondade (a virtude, a justiça etc.) não é uma qualidade da coisa em si, mas uma relação entre a pessoa e a coisa assim designada.
Exatamente.
Bem, se é assim, então qualquer coisa pode ser considerada boa, se a interpretarmos como tal, ainda que nociva ou má para outrem.
Correto. Bom, para o amante, é amar; para o escritor, escrever; para o ladrão, furtar; para o usuário de droga, drogar-se; pouco importando o mal que isso pode causar a si mesmo ou aos outros.
Se é assim, então o que é bom, na perspectiva de um, pode ser mau na perspectiva de outro. É possível que haja acordo (ou desacordo) por motivos diversos, inclusive.
Certamente. A bondade – e também a maldade – é uma perspectiva de alguém sobre algo.
Mas, será que não existe algo que esteja além da perspectiva, que é bom universalmente, isto é, independentemente da perspectiva de alguém em particular?
Dir-se-ia, talvez, Deus.
Ocorre que Deus (ou os deuses) não fala senão por meio dos homens. E cada homem tem sua própria ideia de Deus e de seus propósitos.
Também aqui, portanto, não há como transcender às perspectivas particulares.
Mas, se todos concordamos com algo, e se existe esse algo com o qual concordamos, então deve existir algo que transcende à perspectiva.
Não consigo imaginar nada assim.
De todo modo, a eventual unanimidade sobre alguma coisa significa apenas que há uma unanimidade de perspectivas sobre esse algo, mas não significa que a perspectiva não exista. Exemplo: é possível imaginar uma sociedade de tal modo religiosa que todos estão de acordo em admitir a existência de Deus, e um único Deus.
Mas isso não prova, a rigor, a existência de Deus; prova, isto sim, uma concordância de todos sobre essa crença em particular. Enfim, a fé em Deus (ou em qualquer outra coisa) prova a fé mesma, mas não a existência de Deus. De mais a mais, trata-se de uma ficção, visto que nada existe no mundo que não comporte alguma forma de dissidência ou divergência.
Porque o que quer que possa ser pensado, por quem quer que seja pensado, como quer que seja pensado, sempre poderá ser pensado de diversas outras formas e, pois, conduzir a resultados também diversos.
Talvez a única exceção a isso seja a matemática, afinal ninguém duvida de que 2 + 2 são 4, e não 5 ou 7.
De fato. Mas a matemática é um saber artificial e de todo modo pressupõe um acordo sobre isso.
Ainda que assim seja, parece indiscutível que preferimos a verdade à mentira, a bondade à maldade, a justiça à injustiça.
Concordo. É que, em princípio, a verdade nos fortalece e a mentira nos enfraquece (socialmente), tornando-nos desacreditados, vulneráveis etc.
Tanto é assim que sempre que a verdade nos ameaça, nos põe em perigo, não hesitamos em mentir. Assim, por exemplo, quando sofremos uma acusação grave, não pensamos duas vezes em negar a verdade. Além disso, nem sempre a verdade é preferível à mentira (v.g., se, para proteger ou salvar alguém, precisamos mentir).
Em suma, não amamos a verdade nem odiamos a mentira, mas o que podemos obter por meio delas. Poderíamos dizer o mesmo de Deus etc. Ninguém, rigorosamente falando, ama Deus, mas o que pode obter por meio da fé (saúde, prosperidade, vida eterna etc.). Ninguém ama um Deus fraco ou impotente.
Mas não há algo em comum entre essas várias perspectivas? O que nos move a interpretar uma coisa como boa e outra como ruim, por vezes a mesma coisa, inclusive, em momentos distintos?
Parece que comum a todos os nossos juízos de valor (bom, justo, belo etc.) é a sensação (consciente ou inconsciente) de aumento de poder. Assim, bom é tudo que aumenta o nosso sentimento de poder. E ruim é tudo que nos causa a sensação contrária, de diminuição do sentimento de poder.
Quero dizer que julgamos má a doença, a perda de alguém ou de algo que nos é caro, a morte etc., porque experimentamos uma diminuição do nosso sentimento de poder, um enfraquecimento. Enfim, má é tudo que nos diminui, nos enfraquece, nos ameaça.
Parece-me que a doença e a morte não são necessariamente assim, isto é, nem sempre importam numa diminuição do sentimento de poder.
De fato, também a morte (a doença etc.) pode significar, em casos extremos, um aumento desse sentimento de poder. Assim, por exemplo, a morte, na perspectiva de um doente terminal, que já não vê sentido algum na vida, ou do suicida acometido de profunda depressão. A morte pode, pois, representar um alívio, isto é, o fim de uma vida atormentada e sem sentido. A morte pode ser, portanto, um bem na perspectiva de quem, nesse contexto, a experimenta.
E, mais, se, imediatamente, os parentes têm razão para lamentar a morte, a doença etc.; a médio prazo, seus herdeiros talvez tenham razão para que o morto jamais ressuscite.
Naturalmente que esse sentimento de aumento de poder não é imutável e, havendo mudança, mudam também nossos julgamentos. Assim, por exemplo, nossos amigos (esposas etc.) são bons enquanto interpretamos a sua amizade (companhia etc.) como aumento de poder. Se, ao contrário, essa amizade passar a ser perigosa, ameaçadora etc., em razão de infidelidade, por exemplo, não raro passamos a perceber e a tratar um velho amigo (esposa etc. ) como inimigo.
Enfim, nossos amigos são as pessoas com as quais partilhamos uma expansão do sentimento de poder em suas múltiplas configurações (proteção, prazer, confiança, afinidade, conhecimento, prosperidade etc.) e inimigas são aquelas pessoas que nos causam o sentimento contrário – e enquanto esse sentimento persiste.
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Perfeito!
Bom muito, mas muito cético…
Tudo se resume, então (na diferenciação entre bom e mal), à nossa maior ou menor sensação de poder?
De minha perspectiva, acho que não está certo.
Concordo com cada vírgula. Não há fenômenos morais, mas apenas interpretações morais de tais fenômenos. Parabéns pelo texto! O dom da clareza é de poucos. E você está incluído aqui.
Embora concorde em alguns aspectos, porque de fato existe essa interpretação individual, creio que temos pelo menos duas certezas: na morte e que todos que aqui habitamos somos imperfeitos. A partir dessas certezas penso que se deve buscar nortear a trajetória individual de cada qual.