Nietzsche: Aforismo 112 de Aurora

8 de março de 2012

Contribuição à história natural do dever e do direito. – Nossos deveres – são os direitos de outros sobre nós. De que modo eles os adquiriram? Considerando-nos capazes de fazer contrato e dar retribuição, tomando-nos por iguais e similares a eles, e assim nos confiando algo, nos educando, repreendendo, apoiando. Nós cumprimos nosso dever – isto é: justificamos a idéia de nosso poder que nos valeu tudo o que nos foi dado, devolvemos na medida em que nos concederam. De maneira que é nosso orgulho que obriga a fazer nosso dever – queremos restabelecer nossa autonomia, contrapondo, ao que outros fizeram por nós, algo que fazemos por eles – pois, ao fazê-lo, eles penetraram na esfera de nosso poder, e nela se conservariam duradouramente, se não efetuássemos, com o “dever”, uma retribuição, isto é, se não penetrássemos em seu poder.

Os direitos dos outros podem se referir apenas ao que está em nosso poder; não seria razoável, se eles quisessem de nós algo que não nos pertence. Colocado de modo mais preciso: apenas ao que eles acreditam estar em nosso poder, pressupondo que seja o mesmo que acreditamos estar em nosso poder. O mesmo erro bem poderia se achar em ambos os lados: o sentimento do dever depende de partilharmos, nós e os outros, a mesma crença quanto à extensão de nosso poder: de sermos capazes de prometer determinadas coisas, de nos comprometermos em relação a elas (“livre arbítrio”) – meus direitos – são aquela parte do meu poder que os outros não apenas me concederam, mas também desejam que eu preserve. Como chegaram eles a isso? Em primeiro lugar, mediante sua inteligência, temor e cautela: seja que esperam algo semelhante de nós em retorno (proteção dos seus direitos), que consideram perigosa ou inadequada uma luta conosco, que vêem toda diminuição de nossa força uma desvantagem para si, pois então tornamo-nos impróprios para uma aliança com eles, no enfrentamento de um terceiro poder hostil. Em segundo lugar, mediante dádiva ou cessão. Nesse caso, os outros têm poder bastante e mais que bastante para ceder parte dele e garantir a parte cedida àquele a quem a doaram: em que se pressupõe exíguo sentimento de poder naquele que se deixa presentear.

Assim nascem os direitos: graus de poder reconhecidos e assegurados. Se as relações de poder mudam substancialmente, direitos desaparecem e surgem outros – é o que mostra o direito dos povos, em seu constante desaparecer e surgir. Se nosso poder diminui substancialmente, modifica-se o sentimento daqueles que vêm assegurando o nosso direito: eles calculam se podem nos restabelecer a antiga posse plena – sentindo-se incapazes disso, passam a negar nossos “direitos”. Do mesmo modo, quando nosso poder cresce consideravelmente muda o sentimento daqueles que até então o reconheciam, e cujo reconhecimento não mais necessitamos: eles tentarão empurrá-lo até seu nível anterior e desejarão intervir, nisso invocando seu “dever” – mas é palavreado inútil.

Onde o direito predomina, um certo estado e grau de poder é mantido, uma diminuição ou um aumento é rechaçado. O direito dos outros é a concessão, feita por nosso sentimento de poder, ao sentimento de poder desses outros. Quando o nosso poder mostra-se abalado e quebrantado, cessam os nossos direitos: e, quando nos tornamos muito mais poderosos, cessam os direitos dos outros sobre nós, tal como os havíamos reconhecido a eles até então – O “homem justo” requer, continuamente, a fina sensibilidade de uma balança: para os graus de poder e direito, que, dada a natureza transitória das coisas humanas, sempre ficarão em equilíbrio apenas por um instante, geralmente subindo ou descendo: – portanto, ser justo é difícil, e exige muito prática e boa vontade, e muito espírito muito bom.-

Extraído de Aurora, de F. Nietzsche. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, pp. 82-83. Tradução de Paulo César de Souza.

 385 total views,  1 views today

Número de Visitas 2801

5 Comentários

  1. Oi Paulo, tudo bem?
    Quem escreve é o amigo André. Apesar de ler os seus textos, não lhe escrevi mais porque estou imerso num profundo vazio criativo e não consigo terminar várias coisas que comecei.

    Escrevi centenas de páginas mas não consigo “dar liga”, reunir os diversos trechos de forma harmônica, sinuosa e elegante, seja o livro sobre Kelsen e Nietzsche, seja as demais obras literárias que não consigo concluir.

    Porém, quando li a citação de Nietzche sobre o direito, me deu vontade de escrever algo de ímpeto, e assim foi feito. Desse modo, reproduzo abaixo um breve texto que acabei de escrever chamado “Nietzsche e o direito: breves considerações.”

    NIETZSCHE E O DIREITO: BREVES CONSIDERAÇÕES

    Na obra “Aurora”, o direito é relacionado ao conceito de “sentimento de poder”, conceito tal que irá desaparecer nas obras seguintes e dará azo ao surgimento do tão discutido conceito de “Vontade de poder”.

    O conceito de “Vontade de poder” possui várias e diversas acepções, fato que pode ser explicado porque Nietzsche não tem uma preocupação professoral, acadêmica, mas sim está impregnado de um espírito poético, libertino, artístico, espontâneo, genuíno, e, de certa forma, ingênuo e irresponsável.

    O mesmo acontece com os conceitos de “Eterno retorno” e “niilismo”, que, em suma, simbolizam a busca incansável de Nietzsche por encontrar meios capazes de aliviar (ou até mesmo redimir e justificar) o imenso vazio existencial que sufoca a humanidade.

    Ser capaz de se jogar no abismo (isto é, na falta de sentido último da existência) e não ficar se lamentando por não ter feito aquilo que gostaria de fazer ou ser quem gostaria de ter sido. Viver uma existência autêntica, genuína, alegre, e, de certa forma, emancipada de convenções sociais que apenas negam e condenam traços inextirpáveis da vida humana.

    Nietzsche diagnosticou um problema (o profundo mal estar da civilização, o sufocante vazio existencial) e indicou algumas soluções para tal (a superação do rancor, do ressentimento e da angústia; a necessidade de aceitação de si mesmo e da busca incessante pelo autoconhecimento e autocontrole de si próprio, sem necessitar que os outros lhe digam o que deve ser feito), soluções tais que, obviamente, devem ser aprimoradas e desenvolvidas, sempre à luz de um profundo espírito crítico e esclarecido, digno daqueles que são capazes de pensar por si mesmos.

    O direito, para Nietzsche, deve ser concebido como uma manifestação cultural e a cultura deve ser entendida como refinamento da crueldade.

    O ser humano é essencialmente cruel, perverso, cínico, instintivo. A razão é apenas a superfície que encobre o primado de forças impessoais, expansivas, que, quando reprimidas, estimulam a violência, a revolta e a agressividade e impossibilitam o convívio social. O conflito é inerente à toda sociedade.

    Há uma natureza humana em Nietzsche, e não uma essência socialmente e historicamente construída, como defende Michel Foucault, que, na sua obra “A verdade e as formas jurídicas”, por exemplo, na parte final do livro, em que há uma reprodução da palestra proferida por Foucault e, em seguida, do debate desse com uma série de professores e psicanalistas, o historiador francês defende que o conceito de natureza humana é socialmente construído e não um dado possível de ser empiricamente apresentado (ou mesmo ontologicamente descrito por meio de uma profunda auto-análise), pois essa se altera ao logo do tempo e da história.

    Foucault, no decorrer de outras obras, reitera que toda afirmação sobre a existência de alguma característica ontologicamente inata ao homem ou às relações sociais também deve ser concebida como resultado do momento histórico e das relações sociais vigentes e predominantes.

    Desse modo, como salienta Foucault em sua obra “Em defesa da sociedade” o discurso que prega que “a guerra é a continuação da política por outros meios” (frase proferida por Clausewitz) foi vigente num determinado período e local, uma vez que num período imediatamente anterior (e igualmente no período posterior) o pensamento predominante era o de que “a política é a continuação da guerra por outros meios”, pensamento tal de matiz Hobbesiano, uma vez que é baseado numa concepção humana de um ser covarde, vil, sorrateiro, astuto e que está na espera da melhor oportunidade para dar o bote derradeiro.

    Em tal sociedade, o conflito é iminente e repousa fragmentado, difuso, esperando para ser universalizado e concretizado.

    Em Nietzsche, o direito (ou melhor, o estado de direito) é apresentado como estado de exceção, uma vez que o cenário habitual da convivência humana repousa na violência, na agressão, no domínio e na expansividade de forças que não conhecem freios nem medidas.

    Desse modo, um estado de não agressão (isto é, de não violência), só pode ser tido como um estado de suspensão (exceção) daquilo que é ordinário e até mesmo intrínseco e indissociável da natureza humana.

    Portanto, diferente da interpretação de Foucault, para Nietzsche é possível se falar, sim, de uma natureza humana e de traços inerentes aos diversos seres, independentemente do tempo e do espaço em que estão localizados.

    Ao longo da obra de Nietzsche, não há uma preocução rígida, fria e analítica na conceituação dos termos, uma vez que o mesmo escreve, na maioria dos casos, impregnado muito mais de um espírito poético, libertino, artístico, do que de um tom professoral, acadêmico, frio, desapaixonado.

    Aliás, como escreveu Nietzsche em “Ecce Homo” (sua autobiografia intelectual), os intelectuais acadêmicos, na sua vasta maioria, não podem ser considerados pensadores ou filósofos, no sentido estrito do termo, e sim meros operários, professores que apenas repetem o que foi criado por outras mentes, mas que, como apenas “papagaiam” o que foi dito, sem serem capazes de criar algo, acabam por retirar o brilho, a força, a beleza e a autenticidade de um pensamento.

    Conhecer e ensinar devem ser atividades profundamente impregnadas de um espírito criativo, artístico e sensível, que não se preocupa muito com convenções e com aquilo que já se encontra estabelecido, mas sim com transgredir, criar, inovar e apresentar algo novo, forte, intenso e harmônico, capaz de superar o estágio de apatia e decadência que contamina todas as manifestações culturais vigentes em nosso tempo.

    Desde que o mundo é mundo, a civilização divide-se em basicamente dois tipos de seres: o rebanho e os senhores.

    O rebanho, por não pensar e por necessitar que outros lhe digam o que deve ser feito, acaba apenas reproduzindo e seguindo valores, crenças e idéias alheias, sem as questionar.

    Os senhores, pelo contrário, são aqueles que ditam as regras e dizem: “Isto deve ser feito assim e assado!” Não há moralidade capaz de frear e conter o ímpeto dos autênticos senhores, líderes do rebanho, que, como seres que predominam, acabam fixando seu corpo de leis e normas a ser devidamente obedecido.

    As leis, portanto, são criações humanas, expressões de uma determinada cultura e cristalizam certos valores, porém, não os valores e cultura da maioria, mas sim aqueles valores provenientes daqueles que foram capazes de se impor.

    Por outro lado, como bem expressa Nietzsche nas obras “Para além de bem e mal” e “Genealogia da Moral”, o direito é uma manifestação humana, logo, uma expressão cultural. Já a cultura é entendida como o refinamento (sublimação) da crueldade.

    Portanto, o direito nada mais é que uma manifestação subliminar (implícita, inconsciente) de crueldade e irracionalidade, que, sob o manto do formalismo e tradicionalismo excessivo, visa encobrir o primado de relações de domínio e submissão.

    Se em Marx o direito era concebido como sendo apenas um “epifenômeno das relações materiais e econômicas”, para Nietzsche, sem sombra de dúvidas, o direito deve ser entendido como um “epifenômeno das relações políticas”.

    Entretanto, a política, em Nietzsche, deve ser compreendida como um fenômeno intrínseco àquilo que é humano, porque o ímpeto de dominar, de se fazer prevalecer e impor seus valores e crenças, é algo que não pode ser extirpado e tampouco ignorado das relações sociais.

    Conviver pacificamente e harmoniosamente em sociedade é algo que só pode ser possível se aquele que é dominado e constantemente violentado pelas relações sociais vigentes não se rebelar.

    Entretanto, como uma espécie de lei natural que pode ser extraída de toda sociedade, todas as relações sociais, toda a moralidade, de tempos em tempos, devido à sua cristalização e insuficiência de produzir valores afirmativos da existência, acaba por provocar o surgimento de eixos ou polos de revolta e resistência, que se pautam pelo espírito de transgressão e de superação de formas vigentes que já se mostraram esgotadas e incapazes de fornecer respostas e soluções satisfatórias aos principais problemas e angústias sociais.

    Texto escrito em 11-03-2012. Direito autorais reservados.

  2. ANDRÉ, também vivo atualmente esse mesmo vazio criativo, mas, diferentemente de vc, creio que o meu tem a ver com a idade. Seus textos há muito deveriam ser publicados. Quem perde com isso (não publicação) somos todos nós que gostamos de ler grandes autores, ainda que desconhecidos ou pouco conhecidos. Espero que vc supere esse seu excesso de perfeccionismo e publique seus textos o quanto antes. Abraço, PQ

  3. Paulo, muito obrigado pelas palavras de estímulo. Vindo de uma grande mente como você, tais palavras soam ainda mais reconfortantes. Vou tentar mudar alguns de meus hábitos e ver se recupero a energia e o ânimo. Abraço, André

  4. Parabéns pelo texto. Excelente!
    Tenho vários textos que escrevo buscando preencher esse vazio, ao mesmo tempo, em que busco alertar quem um dia possa descobrir que valores, moral e ética não são vendidos na feira.

Deixe um comentário para André Vinicius Cancelar resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *