Leis são necessárias?

7 de junho de 2006

Tenho me questionado freqüentemente, sobretudo em virtude da superprodução legislativa dos últimos anos, em especial, emendas à Constituição e normas penais, leis, em geral, puramente simbólicas e demagógicas, se a própria atividade legislativa não seria, ela mesma, uma atividade desnecessária, inútil, ao menos em relação aos fins que lhe são tradicionalmente assinalados pelo discurso oficial. Pense nisso: se em tua casa, tu tiveres necessidade de afixar na parede um aviso, portaria, lei ou coisa que o valha, advertindo, por exemplo, de que “nesse recinto é proibido matar, estuprar, furtar etc.”, em verdade, tu estarás, por um lado, simplesmente proclamando o óbvio, por outro, se tiveres necessidade de semelhante expediente, é porque em tua casa as coisas chegaram a uma tal desordem que é evidente que essa simples folha de papel não mudará absolutamente nada. E leis são, antes de tudo, folhas de papel com mensagens impressas.

Parece razoável supor ademais que ninguém deixa de matar, estuprar, furtar etc. porque existam leis que incriminam tais comportamentos; afinal, as pessoas cometem ou deixam de cometer crimes porque têm ou não motivação para tanto: emocionais, psicológicas, morais, culturais, religiosas, econômicas etc. Enfim, as complexas motivações humanas dificilmente podem ser eficientemente debeladas pelo poder mítico das leis. Além disso, as leis, rigorosamente falando, nada prescrevem, proíbem ou autorizam; antes, prescrevem, proíbem ou autorizam o que dizemos que elas prescrevem, proíbem ou autorizam; ou seja, elas dizem o que dizemos que elas dizem. É que, afinal, graças à escrita, o discurso se liberta da tutela de intenção do autor, das circunstâncias e da orientação voltada para o leitor primitivo, sendo que a autonomia semântica que resulta dessa tríplice libertação assegura uma carreira independente do texto e abre para a interpretação um campo de exercício considerável (Paul Ricouer, in o justo e a essência da justiça, Instituto Piaget, Lisboa, 1995). É por isso, aliás, que o discurso sobre a lei, com ou sem alteração da redação dos textos legais, está em permanente mutação. Afinal, em última análise, o legal e o ilegal, tal qual o justo e o injusto, o moral e o imoral, é em nós que ele existe!

Não bastasse isso, que legitimidade pode decorrer de leis ditadas por um parlamento absolutamente desacreditado, estruturalmente corrompido e antidemocrático, fundado que é num sistema representativo caduco e a serviço dos grupos econômicos que bancam a eleição dos deputados e senadores, vereadores, prefeitos etc.?

No particular, a questão fundamental reside nisso, porém: pretender mudar a realidade por meio de leis é grandemente utópico. O melhor exemplo disso é a própria Constituição Federal cujo projeto de um Estado Social e Democrático de Direito tem sido sistematicamente desautorizado pela realidade, particularmente no que diz respeito ao capítulo dos direitos sociais: direito à educação, à saúde, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança, entre outros. Aliás, combater o racismo, a desigualdade social, o preconceito, o desemprego, a fome etc. por meio de leis é apenas um modo particular de proclamar retoricamente: “sejam bons, sejam solidários, sejam éticos, respeitem o próximo etc.”; no essencial, a Constituição encerra, portanto, uma simples carta de (boas) intenções.

Mas os exemplos disso – inadequação da lei para transformar a realidade – são inumeráveis no âmbito jurídico-penal, especialmente: a edição de uma lei de crimes hediondos não diminuiu os índices de criminalidade; a promulgação de uma lei de tortura não fez com que os nossos policiais se tornassem menos violentos; leis em favor da ordem tributária não impediram que a sonegação fiscal deixasse de crescer; leis contra a falta de decoro não obstam parlamentares de reincidirem na infração; leis proibitivas de estupros, tráfico de drogas não evitam tais delitos, mesmo porque o criminoso, antes de decidir praticar uma determinada infração, não faz uma prévia consulta ao Código Penal para deliberar a esse respeito. Pergunte, sinceramente, a si mesmo: “por que ainda não estuprei alguém”? “por que ainda não matei alguém?”, “por que ainda não assaltei um banco?” Duvido que a resposta seja: “porque há uma lei que o proíbe; e se a lei for revogada, eu o farei”! Pois quem tiver chegado a uma tal resposta, jamais seria obstado pela simples existência da lei. Ordinariamente, inclusive, o autor de uma infração, seja qual for, acredita que não será descoberto, e segue adiante, se tiver motivação suficiente para tanto.

Tenho, assim, que as leis são um instrumento retórico e demagógico, não raro, de criar uma impressão, uma falsa impressão, de segurança, criando no imaginário social a ilusão de que os problemas foram ou estão sendo resolvidos, até porque de nada valem se não existirem mecanismos reais de efetivação. E as leis parecem assumir nos dias atuais, cada vez mais, uma função mítica, simbólica. E o legislador tem sabido tirar proveito disso, ao decidir legislar em profusão, como se a edição de novas leis não significasse a simples multiplicação de novas violações à lei, mas, antes, a redenção da humanidade.

Apesar disso, não estou a propor a utopia de um Estado sem leis, mas, se quisermos tomar a sério a legislação, devemos adotar um corpo mínimo de leis: claras, precisas, absolutamente necessárias e com um mínimo de efetividade social, pois, como há muito disse Montesquieu, as leis desnecessárias enfraquecem e desacreditam as leis necessárias.

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3 Comentários

  1. Caro Paulo Queiroz
    Falando de política, vou contar a história de um Brasil, que vive pobre, esquecido e mal administrado por corrúptos, insaciáveis por dinheiro e mágicos de impostos.
    E os pobres como ficam?
    Na saúde , na educação, na moradia.Não merecemos tanta miséria, somos humanos e não ”cartelas de bingo”, divulguem, repriminem, mudem de idéia, saia do velho e pense até concluir que, no país em habitamos, aspira e opta por uma ditadura, não tanto severa e não muito liberal, mas fazendo assim, que as leis saiam do papel prevalecendo para todos, e os políticos sejam caçados e excluídos igual ao nosso povo desprezado e sofrído por sua classe social.

  2. Dr. Paulo:
    Interessantíssimo!

    Penso, infelizmente, que apesar das constantes mudanças, por mais evoluída e agradável que aparenta ser uma nova lei, nem todas as pessoas estarão dispostas a respeitar certos limites e a corrigir seu modo de agir. Porque grandes mudanças envolvem, em muitos casos, grandes transformações na vida de cada um.
    Hoje nos damos (ou deveríamos) conta do óbvio: que é necessário e justo respeitarmos nosso semelhante não importa se aceitamos ou rejeitamos suas decisões. Porque quem defende ou condena um suposto “criminoso”, assim como quem aceita ou recusa um tratamento médico sem sangue, o faz baseado em regras que considera legítima, seja humanas ou divinas.
    Porque da mesma forma que não se pode punir sem a presença de norma regulamentadora e a observância das garantias constitucionais, ninguém pode se escusar de cumprir uma lei alegando que não a conhece, ou que seu texto é ultrapassado. Pelo mesmo motivo que condenamos ou absolvemos apoiados em lei ou em nossa convicção, entendemos ou rejeitamos as decisões de um juiz que absolve um acusado, que concede a liberdade provisória ou habeas corpus, (por mais bárbaro que aparenta o crime supostamente praticado) ou ainda que ordena uma transfusão de sangue em uma Testemunha de Jeová mesmo contra sua vontade. Daí, soltar um “criminoso” aparentemente culpado ou autorizar uma transfusão sangüínea é, pois, admitir que aquele ato apenas tornou-se legal, porque amparado em lei. Porém, legítimo, talvez, não o fosse.
    Se apenas duas regras essenciais fossem seguidas igualmente por todos (amar a Deus e o próximo), independentemente de quaisquer interesses pessoais ou convicção filosófica ou religiosa, por certo isso implicaria em mais felicidade para os homens. E não existiriam tantas violações aos direitos, tampouco a necessidade de se reformular e criar outras leis com punições mais severas para crimes que hoje tanto causam vergonha à sociedade.
    Porque querendo ou não, seguindo as idéias do Doutor, sempre existirão regras que foram e serão proibidas, como era e ainda é proibido “comer coisa alguma com sangue” (Gênesis 9:4; Levítico 19:26; Atos 15:28,29), era, e hoje ainda é “proibido roubar”, “proibido matar”. Para alguns ainda se trata de normas ilegítimas; para mim, não.

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