Exclusão da culpabilidade em caso de posse ilegal de arma de fogo

28 de janeiro de 2019

Por Giovane Santin e Geraldo Bahia

Recentemente foi editado pelo Presidente da República o Decreto n. 9.685, de 15 de janeiro de 2019, flexibilizando as exigências para que os cidadãos tenham direito à posse de armas de fogo.

Como justificativa, sustentou-se que 64% (sessenta e quatro por cento) dos cidadãos consultados no referendo de 2005, acerca do Estatuto do Desarmamento, responderam negativamente à possibilidade de proibição de comercialização de armas de fogo no Brasil.

O novel ato normativo alterou a redação do Decreto n. 5.123/2004, em especial do seu artigo 12, para estabelecer em seu § 7º, hipóteses em que há presunção legal de efetiva necessidade da posse de instrumento bélico, para a proteção do próprio cidadão ou de sua propriedade.

Dentre as hipóteses em que é presumida a necessidade da posse de arma de fogo, para própria proteção ou de sua propriedade, sobressaem àquelas dos moradores de áreas rurais, dos proprietários ou responsáveis legais por estabelecimentos comerciais ou industriais, além dos residentes em áreas urbanas “com elevados índices de violência, assim consideradas aquelas localizadas em unidades federativas com índices anuais de mais de dez homicídios por cem mil habitantes, no ano de 2016, conforme dados do Atlas da Violência de 2018”.

Na prática, todos as Unidades Federativas apresentam índices anuais de mais de dez homicídios a cada cem mil habitantes, de acordo com os últimos dados apurados [ano de 2016]1, de modo que a totalidade dos cidadãos residentes em áreas urbanas no Brasil terão presumida a necessidade de uso de arma de fogo.

A matéria será objeto de respeitável controvérsia, tanto política, quanto jurídica, pois partidos políticos de oposição ao atual chefe do Poder Executivo já alardeiam a propositura de ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal2 e notáveis juristas, a exemplo de Lênio Streck, Pedro Estevam Serrano, Daniel Sarmento e Ana Paula Barcellos divergem acerca da compatibilidade constitucional da presunção de necessidade adotada no texto normativo3.

O certo é que após a aprovação do Estatuto do Desarmamento (Lei n. 10826/2003), instaurou-se no país uma rígida política de controle de armas, fincada no pensamento político até recentemente predominante, restringindo significativamente o acesso às armas para a maioria da população brasileira. A autorização para aquisição e posse de arma de fogo estava submetida a rígida análise de conveniência pela Polícia Federal, com base em critérios amplamente subjetivos, estabelecidos no Decreto n. 5.123/2004.

Neste instante há um claro rompimento da política pública anteriormente adotada por outra, centrada em razões ideológicas distintas, que apregoa uma menor intervenção estatal, atribuindo-se maior liberdade, ao menos neste aspecto, aos cidadãos em geral, mediante a flexibilização das regras para acesso a armas de fogo. O melhor e mais adequado modelo de política criminal/segurança pública, no tocante ao controle de armas, é um grande enigma que a história responderá.

De qualquer modo, a realidade social revela que após a entrada em vigor do Estatuto do Desarmamento, diante de um quadro de insegurança pública notório, muitos cidadãos, não raras vezes previamente vitimados por atos de violência, optaram por adquirir armas de fogo ou manter àquelas que já possuíam, com nítida finalidade de autopreservação, mesmo que não obtivessem êxito na emissão/renovação do registro do armamento ou da autorização para posse.

Invariavelmente, em situações das mais diversas, quando surpreendidos por agentes do Estado na posse das respectivas armas de fogo, muitos cidadãos sofreram [ou ainda sofrem] as consequências jurídico-penais dos respectivos atos, que muito se assemelhavam à desobediência civil, restando submetidos a procedimentos criminais, por força dos artigos 12 ou 16 da Lei n. 10.826/2003.

A condenação criminal, salvo eventual intercorrência (suspensão condicional do processo, nulidade processual, causa extintiva de punibilidade, dentre outras), era praticamente certa: não havia margem para profundas discussões quanto à autoria e materialidade da conduta prevista na norma penal incriminadora.

O contorno social em que o indivíduo estava inserido, salvas raríssimas exceções4, era desconsiderado pelo Poder Judiciário, pois compreendia-se majoritariamente que “não há falar em ausência de reprovabilidade da conduta ou de inexigibilidade de conduta diversa, sob a alegação de que a arma era destinada exclusivamente à proteção pessoal e da propriedade, pois, se pessoas pudessem possuir armas de fogo simplesmente por se sentirem ameaçadas, inexistiria necessidade de regulamentação legal do porte e registro de arma de fogo”.5

Contudo, ao editar o Decreto n. 9.685/2019, presumindo-se a necessidade de posse de arma de fogo pelos cidadãos que se encontrarem nas hipóteses elencadas no artigo 12, § 7º, incisos III, IV e V, o Poder Público emite a sua declaração formal de reconhecimento do contexto de anormalidade da segurança pública, com a constatação de elevadíssimos índices de violência no Brasil, os quais ultrapassam a taxa de dez mortes violentas a cada cem mil habitantes – nível registrado pelos países desenvolvidos e considerado aceitável pela Organização Mundial de Saúde da Organização das Nações Unidas (ONU) -, a afastar a reprovabilidade social da conduta daquelas pessoas que, antes da novel alteração legislativa, insistiram em adquirir irregularmente armas de fogo ou manter àquelas que já possuíam, com finalidade de autoproteção da vida ou do patrimônio.

Nas atuais condições estabelecidas pelo Decreto n. 9.685/2019 muitos daqueles que foram condenados ou estão submetidos a ação penal por crime de posse irregular de arma de fogo (art. 12 da Lei n. 10.826/2003) se tivessem no passado a oportunidade apresentada pelo Poder Executivo, certamente obteriam pelas vias legais o direito de possuírem armas de fogo para fins de resguardo da própria segurança ou do respectivo patrimônio.

Diante de tão significativa mudança de política criminal, o ideal seria que juntamente com a flexibilização das regras para posse de arma de fogo, o Poder Público editasse norma legal extinguindo a punibilidade de condutas pretéritas (abolitio criminis), a exemplo do que fora anteriormente estabelecido no artigo 32 do Estatuto do Desarmamento, com o advento da Lei n. 11.706/2008 – originária de Medida Provisória -, porquanto neste instante o Estado passou a admitir como legítimas condutas que outrora receberiam a reprovabilidade penal. Não se tem notícia de qualquer proposta legislativa nesse sentido, ao menos neste instante.

De qualquer modo, diante do contorno jurídico estabelecido pelo Decreto n. 9.685/2019, não há como deixar de reconhecer que a conduta de cidadãos que, dado ao rigoroso controle de armas exercidos anteriormente pelo Poder Público se sujeitaram a adquirir irregularmente armas de fogo ou manter àquelas que já possuíam com finalidade de autoproteção da vida ou do patrimônio, merecem nova leitura pelo Poder Judiciário, pois não se pode compreender como criminosa uma ação que embora encontre adequação formal à norma penal (art. 12 da Lei n. 10.826/2003), traz consigo uma justificativa material [elevadíssimos e inaceitáveis índices de violência] avalizada explicitamente pelo Poder Executivo.

Em hipóteses tais, não se está diante de “criminosos”, tampouco eventual condenação com o cumprimento de pena resolverá o conflito social instaurado, muito menos se atingirá as funções de retribuição e prevenção atribuída à sanção criminal.

Pelo contrário, são pessoas que agiram em um contexto social que não se reclamaria comportamento diverso, diante da insegurança e dos medos a que estão submetidos ante a ineficiência do Estado em garantir a segurança dos cidadãos.

Juarez Cirino dos Santos leciona que “na perspectiva da teoria dominante, a anormalidade das circunstâncias do fato que fundamenta a inexigibilidade de comportamento diverso incide sobre situações de exculpação concretas, nas quais atua um autor culpável ou reprovável que, contudo, deve ser ex- ou desculpado porque o limite de exigibilidade jurídica é determinado pelo liminar mínimo de dirigibilidade normativa ou de motivação conforme a norma, excluída ou reduzida em situações de exculpação legais ou supralegais6.

Não se trata de proposta inédita. A inexigibilidade de conduta diversa é solução amplamente aceita pela jurisprudência pátria como causa de exclusão de culpabilidade, v.g., em crimes de apropriação indébita previdenciária, quando se constata que apesar de ter deixado de recolher os valores devidos, as dificuldades financeiras enfrentadas justificam a conduta do empregador7.

Assim, a inexigibilidade de conduta diversa, como causa supralegal excludente da culpabilidade, deve nortear a solução jurídica de eventuais ações penais e/ou revisões criminais, relativas a crimes de posse irregular de arma de fogo (art. 12 da Lei n. 10.826/2003), porquanto a anormalidade do contexto dos fatos está reconhecida pelo próprio Poder Executivo, por meio do Decreto n. 9.685/2019, restando apenas a prudente análise das circunstâncias pessoais do agente.

Giovane Santin é Mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Ex-Assessor Jurídico no Tribunal de Justiça de Mato Grosso, Advogado Criminalista, Professor de Criminologia, Direito Penal e Processo Penal da Universidade Federal de Mato Grosso e Coordenador Estadual do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).

Geraldo Bahia é Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Federal de Mato Grosso e Assessor Jurídico no Tribunal de Justiça de Mato Grosso.

4 TJGO, Apelação Criminal n. 0211721820158090134, Relator Des. João Waldeck Felix de Souza, Segunda Câmara Criminal, julgado em 8/11/2018.

5 TJMT, Apelação Criminal n. 120937/2017, Relator Des. Pedro Sakamoto, Segunda Câmara Criminal, julgado em 06/12/2017.

6 DOS SANTOS, Juarez Cirino. Direito Penal, Parte Geral. 5ª Edição, Editora Conceito, 2012, Florianópolis, pág. 321.

7 TRF4, Apelação Criminal n. 50138699620154047201 SC, Relator Des. Leandro Paulsen, julgado em 7/11/2018, Oitava Turma.

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