Crítica da vontade de verdade

10 de maio de 2010

         Verdade é um tipo de erro sem o qual uma espécie de seres vivos não poderia viver. O valor para a vida decide em última instância.1


O professor Lênio Luiz Streck acaba de publicar um interessantíssimo livro, cujo título é: “o que é isto? – decido conforme a minha consciência?”2

O texto pretende combater o “juiz solipsista”3, uma espécie de Juiz Robinson Crusoé, que decidiria, não segundo a Constituição, mas segundo a sua consciência (e vontade) apenas.

Escreve textualmente Lênio Streck: “Desse modo, quando falo aqui – e em tantos outros textos – de um sujeito solipsista, refiro-me a essa consciência encapsulada que não sai de si no momento de decidir. É contra esse tipo de pensamento que volto minhas armas. Penso que seja necessário realizar uma desconstrução (abbau) crítica de uma ideia que se mostra sedimentada (ou entulhada, no sentido da fenomenologia heideggeriana) no imaginário dos juristas e que tem se mostrado de maneira emblemática no vetusto jargão: ‘sentença vem de sentire…’(para citar apenas um entre tantos chavões, que, como já demonstrei, transformaram-se em enunciados performáticos).”

A primeira dúvida reside em saber se existiria de fato um tal juiz/sujeito. Afinal, de acordo com o autor, “…não é mais possível pensar que a realidade passa a ser uma construção de representações de um sujeito isolado (solipsista). O giro ontológico-linguístico já nos mostrou que somos, desde sempre, seres-no-mundo, o que implica dizer que, originariamente, já estamos ‘fora” de nós mesmos nos relacionando com as coisas e com o mundo. Esse mundo é um ambiente de significância; um espaço no interior do qual o sentido – definitivamente – não está à nossa disposição”.4

Se isto é correto, parece então que um juiz solipsista jamais existiu realmente, ainda que ele (o juiz) pensasse decidir isoladamente, com base exclusivamente em sua consciência. E mesmo um Robinson Crusoé, cuja consciência era o resultado de toda a tradição moral, religiosa, jurídica (etc.) que lhe fora ensinada antes do naufrágio que o vitimara, tinha na ilha a companhia de um Sexta-Feira. Tinha, pois, além de seus próprios limites, os limites de um semelhante e da ilha/natureza em que passou a habitar.

Enfim, nem mesmo para Robinson Crusoé é possível falar de “um grau zero de sentido”. E como assinala Gadamer, “não é a história que pertence a nós, mas nós que pertencemos à história. Muito mais do que nós compreendemos a nós mesmos na reflexão, já estamos compreendendo de uma maneira auto-evidente na família, na sociedade e no Estado em que vivemos. A lente da subjetividade é um espelho deformante. A auto-reflexão do indivíduo não é mais que uma centelha na corrente cerrada da vida histórica. Por isso, os pré-conceitos de um indivíduo são, muito mais que seus juízos, a realidade histórica de seu ser”.5

Justamente por isso, parece carecer de sentido a pergunta: “onde ficam a tradição, a coerência e integridade do direito? Cada decisão parte (ou estabelece) um ‘grau zero de sentido’?”.6

Aliás, é o próprio autor quem conclui que “é exatamente por isso que podemos dizer, sem medo de errar, que o sujeito solipsista foi destruído (embora sobreviva em grande parte do ambiente jusfilosófico). Afinal, como diz Gadamer, ‘quem pensa a linguagem já se movimenta para além da subjetividade.”7

E não seriam o espírito de transgressão e a tendência ao isolamento/solipsismo inerentes aos pensadores que se pretendem originais?

Mas não é só. Para Lênio Streck, que cita voto proferido por um certo ministro que afirma não importar o que os doutrinadores pensam, “já como preliminar é necessário lembrar – antes mesmo de iniciar nossas reflexões no sentido mais crítico – que o direito não é (e não pode ser) aquilo que o intérprete quer que ele seja. Portanto, o direito não é aquilo que o Tribunal, no seu conjunto ou na individualidade de seus componentes, dizem que é”.8 Uma das conclusões a que chega é exatamente nesse sentido: “o direito não é aquilo que o judiciário diz que é. E tampouco é/será aquilo que, em segundo momento, a doutrina, compilando a jurisprudência, diz que ele é a partir do repertório de ementários ou enunciados com pretensões objetivadoras.”9

A pergunta que sempre fica é: se o que os tribunais (e juízes) dizem que é o direito, direito não é, o que seria isso então? O não-direito, o torto, o arbítrio? E o que seria o direito?

Segundo Lênio Streck, a decisão judicial não é um ato de vontade. O que seria, então? Um ato de verdade, entendida como a resposta constitucionalmente adequada ou similar?10 Mas a verdade, escreveu Nietzsche, “não é algo que existisse e que se houvesse de encontrar, de descobrir – mas algo que se há de criar e que dá o nome a um processo; mais ainda: uma vontade de dominação que não tem nenhum fim em si: estabelecer a verdade como um processus in infinitum, um determinar ativo, não um tornar-se consciente de algo que fosse em si firme e determinado. Trata-se de uma palavra para a ‘vontade de poder’”.11

Precisamente por isso é que Günter Abel diz que não é mais a interpretação que depende da verdade, mas justamente o contrário, que é a verdade que depende da interpretação, pois nos processos de interpretação não se trata, primariamente, de descobrir uma verdade preexistente e pronta, uma vez que não é possível pensar que haja um mundo pré-fabricado e um sentido prévio que simplesmente estejam à nossa disposição aguardando por sua representação e espelhamento em nossa consciência.12

E se existem apenas perspectivas sobre a verdade, não existe, por conseguinte, a verdade; consequentemente, não existe a resposta constitucionalmente adequada (ou correta etc.), mas apenas perspectivas sobre a resposta constitucionalmente adequada.13 A resposta constitucionalmente adequada/correta é uma ficção inútil.

E o que é (e quem diz qual é) essa resposta constitucionalmente adequada? E o que a torna a resposta adequada, relativamente às demais (não adequadas)?

É certo que Lênio Streck entende existir a resposta correta (não a única), isto é, “adequada à Constituição e não à consciência do intérprete”14, chegando a defender, inclusive, um direito fundamental a isso.15 Mas o que seria de fato a resposta constitucionalmente adequada senão aquela que o próprio intérprete (juiz, tribunal etc.) considera, segundo a sua perspectiva (consciência etc.), como tal?

Kelsen tinha, pois, razão quando assinalou:

 

Todos os métodos de interpretação até o presente elaboradas conduzem sempre a um resultado apenas possível, nunca a um resultado que seja o único correto. (…). Na aplicação do Direito por um órgão jurídico, a interpretação cognoscitiva (obtida por uma operação de conhecimento) do Direito a aplicar combina-se com um ato de vontade em que o órgão aplicador do Direito efetua uma escolha entre as possibilidades reveladas através daquela mesma interpretação cognoscitiva.16

 

Parece-nos, pois, que podemos criticar um certo tipo de vontade, mas não a vontade mesma, que está na raiz de toda decisão (judicial ou não), inevitavelmente. E por mais que consideremos uma determinada decisão (interpretação) arbitrária, incorreta ou injusta, uma coisa é certa: os limites de uma interpretação são dados por uma outra interpretação.

Finalmente, a possibilidade de decisões absurdas ou teratológicas (contra legem) é, em princípio, necessária à democracia. Que diria, com efeito, a doutrina da época sobre a primeira decisão (solipsista?) que, no auge do regime, declarava a nulidade do contrato de compra e venda de escravos, que admitia a adoção por casais homossexuais, que recusava a distinção legal entre filhos legítimos e ilegítimos, que permitia a mudança de sexo etc.?

E mais: a questão fundamental não reside (mais) em saber se a sentença encerra ou não um ato de vontade, se há ou não uma resposta constitucionalmente adequada, mas na legalidade e legitimidade do controle dos atos do poder público, aí incluídas as decisões judiciais.

1 Nietzsche. Vontade de Poder. Rio: Contraponto, 2008, p. 264.

2 O que é isto – Decido conforme a minha consciência? Livraria do Advogado Editora. Porto Alegre: 2010.

3 De acordo com o Dicionário Oxford de Filosofia (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, p.367), solipsismo é “a crença de que, além de nós, só existem as nossas experiências. O solipsismo é a conseqüência extrema de se acreditar que o conhecimento deve estar fundado em estados de experiências interiores e pessoais, e de não se conseguir encontrar uma ponte pela qual esses estados nos deem a conhecer alguma coisa que esteja além deles. O solipsismo do momento presente estende este ceticismo aos nossos próprios estados passados, de tal modo que tudo o que resta é o eu presente. Russel conta-nos que conheceu uma mulher que se dizia solipsista e que estava espantada por não existirem mais pessoas como ela.”.

4 Idem, p. 57.

5Verdade e Método. Petrópolis: Editora Vozes, 1999, 3ª edição.

6 Ibidem, p. 27.

7 Ibidem, p. 58.

8 Ibidem, p. 25.

9 Ibidem, p.107.

10Em Verdade e consenso (Rio: Lúmen Júris, 2007, p. 309), Lênio Streck diz que “…a resposta correta aqui trabalhada é a resposta hermeneuticamente correta, que, limitada àquilo que se entende por fenomenologia hermenêutica, poderá ser denominada de verdadeira, se por verdadeiro entendermos a possibilidade de nos apropriarmos de pré-juízos autênticos, e, dessa maneira, podermos distingui-los dos pré-juízos inautênticos…”. Tem ainda que “na medida em que o caso concreto é irrepetível, a resposta é, simplesmente, uma (correta ou não) para aquele caso. A única resposta acarretaria uma totalidade, em que aquilo que sempre fica de fora de nossa compreensão seria eliminado. O que sobra, o não-dito, o ainda não-compreendido, é o que pode gerar, na próxima resposta a um caso idêntico, uma resposta diferente da anterior. Portanto, não será a única resposta; será sim, ‘a’ resposta.” (idem, p. 317). E mais: “a única reposta correta é, pois, um paradoxo: trata-se de uma impossibilidade hermenêutica e, ao mesmo tempo, uma redundância, pois a única resposta acarretaria o seqüestro da diferença e do tempo (não esqueçamos que o tempo é a força do ser na hermenêutica). E é assim porque conteduística, exsurgindo do mundo prático.”(Ibidem, p. 317). Conclui que “em síntese, a afirmação de que sempre existirá uma resposta constitucionalmente adequada – que, em face de um caso concreto, será a resposta correta (nem a melhor nem a única) – decorre do fato de que uma regra somente se mantém se estiver em conformidade com a Constituição…” (idem, p. 364). Em o que é isto? Decido conforme a minha consciência? Lênio Streck volta a afirmar que a resposta que propõe não é nem a única nem a melhor, mas “simplesmente se trata ‘da resposta adequada à Constituição’, isto é, uma resposta que deve ser confirmada na própria Constituição, na Constituição mesma (no sentido hermenêutico do que significa a ‘Constituição mesma’…” (cit., p. 97). Idem, p. 84, nota de rodapé 96, Lênio Streck escreve: “de se ressaltar que, por certo, não estou afirmando que, diante de um caso concreto, dois juízes não possam chegar a respostas diferentes. Volto a ressaltar que não estou afirmando, com a tese da resposta correta (adequada constitucionalmente) que existam respostas prontas a priori, como a repristinar as velhas teorias sintáticas-semânticas do tempo posterior à revolução francesa. Ao contrário, é possível que dois juízes cheguem a respostas diferentes, e isso o semanticismo do positivismo normativista já havia defendido desde a primeira metade do século passado. Todavia, meu argumento vem para afirmar que, como a verdade é que possibilita o consenso e não contrário; no caso das respostas divergentes, ou um ou ambos os juízes estarão equivocados”.

11 Nietzsche. Vontade de Poder. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008, p. 288.

12Verdade e interpretação, in Nietzsche na Alemanha, org. Scarlett Merton, discurso editorial, S. Paulo, 2005, p. 179/199.

13 Nietzsche escreveu: “há muitos olhos. Também a esfinge tem olhos; consequentemente, há muitas verdades e, consequentemente, não há nenhuma verdade”. Vontade de poder, cit., p. 282.

14O que é isto? p. 101.

15O que é isto? p. 84.

16KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. 6ª Ed. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 394-395.

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26 Comentários

  1. PQ, O solipsismo é o tema da moda no sul do país. Assistindo uma palestra do prof. Jacinto, ano passado, o mesmo se referiu várias vezes a esta expressão. São frutos colhidos do estudo do Direito e Psicanálise.

  2. PQ,

    Essas palavras são alimento para cabeças críticas, pensamento livre… gostaria de ver isso sendo discutido nos corredores e salas das academias…

    Aproveito para indicar o texto do prof. Aury Lopes Jr. na última edição da revista Carta Forense em posição contrária ao Tribunal do Júri, que, como diz o prof. Lydio Sá, é uma instituição desnecessária ao Direito… e acrescento: contrária ao Direito.

    Saudações.

  3. Caro amigo, mais um texto brilhante, parabéns. Ainda ontem trabalhei com ele na aula de doutorado e a discussão foi fantástica, na mesma linha da sua crítica, com a qual estou inteiramente de acordo e terei o maior prazer de incluir nos escritos sobre a decisão penal. Abraços!

  4. Parabéns PQ!

    Fiquei na dúvida se o sujeito solipsista já existiu. se já onde? quando? Digo isso pela conclusão a que Lênio chegou ao afirmar que o sujeito solipsista foi destruido.

    Abc.

  5. Excelentíssimo Professor, passo para dizer que estou no aguardo do artigo sobre o autor Riograndense sobre o qual me comentou. Parabéns pelo site, é um verdadeiro caldeirão de discussões erudítas!!!

  6. É impressionante como os magistrados, mormente na área penal, se afastam de uma interpretação consentânea com a Constituição da República e os tratados internacionais que versam sobre Direitos Humanos.

    Com efeito, imbuídos de preconceitos, condenam e absolvem sem fazer uma análise profunda do caso concreto.

    Professor, seus textos são fantásticos!

    Um forte abraço.

  7. Oi Paulo,

    Seu texto é muito inteligente e desperta intensas reflexões. Como você mesmo disse no final, o problema central a ser discutido, mais do que o solipsismo, talvez diga respeito ao controle das decisões judiciais.

    No entanto, pensar o controle das decisões judiciais remete a um tema mais amplo e de fundamental importância, qual seja: Por que as autoridades devem ser obedecidas? Qual o fundamento de legitimidade do ordenamento jurídico, ou seja, por que as leis devem ser obedecidas?
    Nesse sentido, reproduzo um texto de minha autoria sobre o positivismo jurídico de Hans Kelsen, que é uma síntese e excerto do texto que estou escrevendo. Abraços, André.

    CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES SOBRE O POSITIVISMO JURÍDICO DE HANS KELSEN

    Para Kelsen (2001, p.225-250), o direito é uma técnica social específica que objetiva preservar a higidez e a estabilidade do ordenamento jurídico por meio da imputação de uma consequência jurídica em caso de descumprimento de um preceito normativo.

    O direito não almeja concretizar nenhum valor em específico, até porque seria impossível determinar a prevalência absoluta de um valor em detrimento de outro. Em outras palavras, para o aludido autor, os valores seriam relativos. Não haveria valores absolutos.

    O direito não teria como finalidade suprema a pacificação social. Os valores paz, justiça, lealdade não seriam ideais a serem perseguidos pelo ordenamento jurídico.

    Além do mais, Kelsen parte da premissa do pessimismo antropológico de que o homem, de certa forma, tende ao mal, à perversidão e ao sentimento de júbilo ao ver e fazer os outros sofrerem.

    Se o homem é mal, violento e agressivo por natureza, é natural que os conflitos de interesses sempre se manifestem, sendo tarefa sem sentido a coibição de tais comportamentos, uma vez que tais são inerentes á natureza humana. Nesse sentido, escreveu Kelsen (2001, p.235, grifo nosso):

    A ilusão de que é possível “voltar à natureza” baseia-se na crença de que o homem é bom “por natureza”. Ela ignora o impulso de agressão inato ao homem. Ignora o fato de que a felicidade de um homem é muitas vezes incompatível com a felicidade de outro e de que, portanto, uma ordem natural justa, que garanta a felicidade de todos e, por conseguinte, não tenha de reagir a perturbações com medidas de coerção, não é compatível com a “natureza” dos homens, a julgar pelo que conhecemos sobre ela.

    É uma constante na obra de Kelsen o repúdio à possibilidade de se extrair sentenças e afirmações a partir da concatenação dos fenômenos, sejam causais (relações de causa e efeito, próprias das ciências naturais), ou morais e normativos (caracterizados pelo princípio da imputação). De um ser é impossível derivar um dever-ser.

    No entanto, a partir do trecho citado acima, percebe-se que Kelsen acaba por exprimir uma espécie de “ato falho”, pois acaba por expressar que é possível sim realizar afirmações categóricas e definitivas acerca da natureza humana, ou seja, estabelecer convicções definitivas com força e pretensão de verdade.

    Kelsen propõe ao cientista do direito que, ao elaborar as diversas hipóteses de interpretação de uma norma, concentrasse o seu estudo tão somente nas normas jurídicas (material jurídico positivado), abstendo-se de utilizar perspectivas filosóficas, sociológicas, antropológicas, históricas, psicológicas etc.

    Nesse momento de elaboração das diversas hipóteses de interpretação da norma jurídica, seria vedado ao cientista se utilizar de juízos de valor.

    Num segundo momento, que seria o de concretização da norma a ser realizada pelo magistrado, haveria, pois, um ato de vontade (faculdade do espírito), uma vez que se realizaria a escolha de uma norma em detrimento de diversas outras interpretações previamente estabelecidas pelos cientistas do direito.

    Nesse momento, o magistrado iria criar a norma jurídica individual para o caso concreto, que seria a síntese do processo de interpretação do ordenamento jurídico, revelando, de certa forma, seus valores, preconceitos e ideologias, próprias e específicas de cada escolha individual.

    A FUNDAMENTAÇÃO DA LEGITIMIDADE DO ORDENAMENTO JURÍDICO POR MEIO DA ELABORAÇÃO DA NORMA FUNDAMENTAL

    Por que as autoridades devem ser obedecidas? Qual o fundamento de legitimidade do ordenamento jurídico, ou seja, por que as leis devem ser obedecidas?

    Hans Kelsen (2001, p.251-259, dentre outras passagens), elaborou uma resposta para o referido tema. Para o autor, o direito é uma ordem normativa coercitiva e heteronoma. Um conjunto de preceitos normativos que autorizam a imposição de uma consequência jurídica no caso de seu descumprimento.

    Tal consequência jurídica poderá ser concretizada à força e independentemente da aquiescência, aceitação ou compreensão dos indivíduos acerca da necessidade da aludida medida.

    O Estado, que seria a personificação do ordenamento jurídico (falar de um Estado de direito, para Kelsen, seria uma redundância, um pleonasmo), poderia utilizar sua força (poder de império) para imputar uma consequência jurídica, mesmo que o sujeito não concorde com a racionalidade de referida medida. Justamente por isso se fala que a coercitividade e a heteronomia seriam características essenciais ao conceito de direito.

    Aliás, na concepção de Kelsen, a sanção é um elemento tão basilar ao ordenamento jurídico que, durante muito tempo, ele defendeu que a norma jurídica primária seria justamente a norma que prevê a consequência jurídica a ser aplicada no caso de descumprimento da norma jurídica primária, que seria a norma que estabelece, preceitua, autoriza ou veda determinado comportamento. Tal concepção somente foi alterada e suprimida a partir de sua obra póstuma Teoria Geral das Normas (1986).

    No sentido de estabelecer o fundamento de legitimidade do ordenamento jurídico, ou seja, o motivo pelo qual as leis devem ser obedecidas, Kelsen elaborou a norma fundamental fictícia. A norma fundamental, porém, como iremos demonstrar, não possui uma função meramente epistemológica, destinada a ser o ponto final na cadeia de imputação do ordenamento jurídico.

    Immanuel Kant (1997) objetivou fundamentar o conhecimento para organizar o caos das percepções sensíveis. Kelsen, incorporando referida premissa, buscou estabelecer as bases para uma ciência jurídica capaz de fornecer uma unidade sistemática, coerente e harmônica ao estudo das leis em sentido amplo, que, muitas vezes, estabelecem preceituações contraditórias e antinômicas entre si.

    Outra distinção influenciada por Kant se constata por meio da distinção entre os planos do ser e do dever-ser. As ciências da natureza, como a física, a biologia, a química, pertencem à dimensão do ser, uma vez que estão assentadas sobre o princípio da causalidade, pelo qual, ao descreverem os eventos, relacionam um certo fenômeno com uma causa anterior, da qual é efeito.

    Já as ciências do espírito, da qual a ciência jurídica é uma espécie, estão baseadas no princípio da imputação, pela qual um determinado evento, devidamente e previamente prescrito numa norma jurídica (norma que é o resultado da interpretação da lei), estabelece uma consequência jurídica que deve ser imputada ao sujeito que atua de modo contrário ao estabelecido na norma jurídica.

    Tal consequência jurídica deve ser cominada ao sujeito, ou seja, não é algo tão certo de se concretizar como a manifestação de uma lei da natureza (ex.: ao se derrubar um prato da mesa, ele irá cair). Tal consequência pode não se realizar, afinal, o cidadão pode fugir ou morrer.

    Desse modo, nessa cadeia de imputação, em que há uma consequência jurídica relacionada a uma hipótese normativa por meio de uma relação de imputação, deve haver uma norma suprema que estabeleça o fundamento de validade final das outras normas, ou seja, a razão e o modo pelo qual pode e deve haver tal procedimento.

    Tal procedimento somente será válido (legítimo) se estiver de acordo com o estabelecido numa norma hierarquicamente superior, que estabelece o modo de produção das outras normas e o conteúdo sobre o qual as demais normas hierarquicamente inferiores poderão versar. Para Kelsen (2001, p.251), “por validade entenda-se a força obrigatória da lei – a idéia de que ela deve ser obedecida pelas pessoas cuja conduta regulamenta.”

    Nessa hierarquia de normas, haverá sempre uma norma superior, até chegar um momento definitivo, que seria o ponto final na hierarquia das normas. Tal norma suprema é a norma fundamental de Kelsen.

    Ela seria o elo e princípio unificador de todo o ordenamento jurídico, apta a dar unidade e harmonia a um conjunto de normas que, caso contrário, estariam dispostas de forma anárquica, desorganizada e sem coerência.

    A norma fundamental é vazia de conteúdo. No plano interno de cada país, poderia ser traduzida no seguinte preceito: As normas elaboradas de acordo com um procedimento previamente estabelecido e emanadas das autoridades revestidas de legitimidade (investidas de poder pelo ordenamento jurídico) devem ser obedecidas.

    No plano internacional, a norma fundamental seria: as normas costumeiramente estabelecidas na comunidade internacional devem ser obedecidas. Depois da criação da ONU, reformulou-se o preceito, para se estabelecer que as normas produzidas em conformidade com o estabelecido pela Organização das Nações Unidas é que deveriam ser obedecidas.

    Para Kelsen, legitimidade se confunde com legalidade. A justiça de uma norma ou de uma decisão se limita ao campo da isonomia, ou seja, em todos os casos em que devem ser imputadas as consequências jurídicas aos indivíduos que se amoldam numa hipótese normativa, seria injusto apenas que tais consequências sejam imputadas a alguns e não para outros.

    A norma fundamental não é uma norma posta por uma determinada autoridade, mas sim pressuposta, pois é uma abstração necessária para a fundamentação do ordenamento jurídico. Escreveu Kelsen (1986, p.491) a respeito da norma fundamental:

    “Visto que a norma fundamental de nenhum modo determina o conteúdo das normas do ordenamento jurídico, cuja validade fundamenta – porquanto elas são produzidas conforme à norma fundamental -, o conteúdo dessas normas precisa ser determinado por atos positivos, produdentes de normas, e as normas de um ordenamento jurídico positivo não podem ser deduzidas da norma fundamental através de uma operação de pensamento – ainda que a validade de uma norma pudesse ser deduzida, logicamente e em geral, da validade de uma outra norma.”

    A função epistemológica da norma fundamental estaria relacionada com a tarefa de constituir uma real ciência do direito. Ciência jurídica que, como um conjunto ordenado (sistematizado) de conhecimentos em torno de um determinado objeto (no caso, o material jurídico positivado), precisa de um método e de princípios capazes de fornecerem unidade ao sistema.

    Porém, a norma fundamental não se limita a tal tarefa. A norma fundamental funciona como o verniz de legitimidade do ordenamento jurídico. Kelsen sabe que, influenciado pelas célebres lições de Jean Jacques Rousseau (2007), na sua obra O contrato social, o poder não se justifica por si próprio.

    De outra forma, os atos de uma autoridade, entendidos apenas como manifestações de força, não se sustentam por muito tempo, pois são estímulos à revolução e à desestabilização da ordem instituída. A força e o poder em estado bruto precisam se revestir de formas jurídicas.

    Dessa forma, o direito, entendido como ato de manifestação de uma autoridade, fundado tão somente na coercão e na heteronomia, estimula a desestabilização do ordenamento jurídico.

    Nisso reside a importância basilar da norma fundamental, pois ela, ao buscar fornecer um motivo pelo qual as normas jurídicas devem ser obedecidas, acaba por funcionar como fundamento de legitimidade do sistema, como o mínimo de consentimento necessário para legitimar o sistema.

    Nesse sentido, destaca Kelsen (1986, p.491) que: “[…] norma fundamental, que não é mais fundamentável. Ela é a resposta à pergunta por que eu devo conduzir-me de um modo determinado. Mas esta resposta tem o caráter de uma ficção.”

    Ela também não é uma hipótese, pois a hipótese, num sentido lógico, tem pretensão de realidade (explicação final e acabada da realidade). E, para Kelsen, além do fato de ser inalcançavel uma realidade em si (com pretensão de definitividade, atemporalidade e universalidade), seria impossível explicar satisfatoriamente, utilizando-se tão somente do material jurídico positivo (prescindindo da sociologia, da filosofia, da psicologia etc), a razão pela qual as normas jurídicas devem ser obedecidas.

    A pureza do método, como premissa metodológica adotada por ele, faz com que a explicação do fundamento de legitimidade do ordenamento jurídico se limite ao próprio sistema jurídico.

    Sigmund Freud (2010, p.80) explica com clareza o conteúdo da Filosofia do “como se” na sua obra O futuro de uma ilusão. Para tal autor, tal filosofia
    “afirma que em nossa atividade intelectual abundam suposições cuja falta de fundamento, cujo absurdo até, reconhecemos inteiramente. São chamadas de ficções, mas, por variados motivos práticos, teríamos de nos comportar “como se” acreditássemos nelas. Tal seria o caso das doutrinas religiosas em razão de sua incomparável importância para a conservação da sociedade humana.”

    Desse modo, Hans Kelsen, inspirando-se na filosofia do “como se” de Hans Vaihinger (2000), estabelece que a norma fundamental, que é a resposta á pergunta: “Por que as normas jurídicas devem ser obedecidas?”, é tida como uma ficção, ou seja, como algo tão importante de ser apreendido que os cidadãos devem se comportar como se acreditassem na norma fundamental.

    Pouco importa se tal explicação não é verdadeira ou definitiva. O importante é que seja satisfatória e apta a convencer os cidadãos da importância de se conduzirem de acordo com os preceitos normativos, mesmo que esses o façam pelo medo e receio de sofrerem um desprazer (a cominação de uma sanção).

    Dito de outro modo, os cidadãos devem se comportar de acordo com o estabelecido pelas normas porque, caso contrário, será imputado a eles uma consequência jurídica, que tem como finalidade única manter a saúde e a estabilidade do ordenamento jurídico, sistematizado em torno da norma fundamental.

    Não há nenhum valor supremo ou fim a legitimar o ordenamento, segundo Kelsen. Ou seja, a norma fundamental simplesmente diz que as autoridades revestidas de poder devem ser obedecidas e que, caso não o sejam, deverá ser imputado uma consequência jurídica aos cidadãos desobedientes.

    O direito é concebido como ato de uma autoridade capaz de se impor e fazer valer a sua vontade, objetivada por meio do ordenamento jurídico.

    Tal postura positivista visa combater a concepção jusnaturalista do ordenamento jurídico. Segundo Kelsen, o jusnaturalismo se baseia em juízos de valor e sentimentos subjetivos e fluídos, característica que seria insustentável para servir como base de legitimidade ao sistema jurídico.

    Assim, enquanto o jusnaturalismo pretende fazer com que o cidadão compreenda que certa norma engloba o seu bem estar e, se obedecida, irá proporcionar uma realização intensa e satisfatória para o indivíduo, e o contrário (a desobediência) irá prejudicá-lo (isso é o que se entende por autonomia), o positivismo jurídico se baseia na heteronomia, ou seja, seria similar à ordem de um pai a seu filho que, querendo compreender e indagando insistentemente sobre a razão pela qual deve se comportar de determinada forma, o pai, já cansado de dar justificativas (ou mesmo sem a intenção de fornecer alguma), fala para o filho: “Obedeça e cale a boca, senão você vai apanhar”.

    Ou seja, no positivismo jurídico de Kelsen, a autoridade dispensa a aquiescência ou aceitação do sujeito sobre a racionalidade da norma. Pouco importa que o cidadão compreenda que certa norma jurídica visa concretizar o seu bem estar. Por isso se diz que a ordem jurídica é coercitiva e heterônoma.

    Porém, tal postura metodológica é insustentável, uma vez que é fonte de produção e intensificação da angústia, do ressentimento e do sentimento de vingança.

    Os sujeitos que frequentemente se veem obrigados a obedecer e a se submeter a uma normatividade que não concordam ou não aceitam (ou seja, não percebem a racionalidade de tal ordenamento), irão se comportar de modo a concretizar o desejo de subverter e desestabilizar a ordem jurídica que pouco se importa com as suas vontades e anseios, ou seja, que os “manda às favas”.

    No dizer de Nietzsche, em todo escravo há o desejo de se tornar senhor. Ou seja, ninguém suporta ser subjugado por muito tempo. Os sujeitos conscientes de sua força e capacidade se dispõe a, mesmo com o risco de perderem a própria vida, partirem para o enfrentamento da ordem que os oprime.

    E, sem dúvida, uma ordem jurídica sedimentada na heteronomia e na coerção converge para a aceleração e intensificação do referido processo.

    É certo, porém, que a abolição total da coerção e da heteronomia não parece plausível. Até porque, no caso das normas jurídicas que sejam racionais (ou seja, que almejem concretizar o bem estar dos cidadãos), talvez seja fundamental preservar o uso da força (da coerção e da heteronomia) para manter a higidez e a aplicação das referidas normas.

    REFERÊNCIAS

    BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: Lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone Editora, 1995.

    FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão. Tradução: Renato Zwick. Porto Alegre: L&PM Editores, 2010.

    HENKEL, Heinrich. Introduccion a la filosofia del derecho: Fundamentos del Derecho – Madrid: Taurus Ediciones, 1968.

    KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.
    KELSEN, Hans. Teoria geral das normas. Porto Alegre: Fabris, 1986.
    ______. O que é justiça?: a justiça, o direito e a política no espelho da ciência. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
    ______. O Problema da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
    ______. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2000a.
    ______. Teoria geral do direito e do estado. São Paulo: Martins Fontes, 2000b.
    ______. A Ilusão da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
    ______. A democracia. São Paulo: Martins fontes, 2000.

    LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Lisboa: Edição da Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.

    ROUSSEAU, Jean Jacques. O contrato social. Tradutor. Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM Editores, 2007

    VAIHINGER, Hans. The Philoshophy of ‘As If’’: A System of the Theoretical, Practical and Religious Fictions of Mankinf. Translated by C.K.Ogden. New York: Barnes ans Noble, 1968.

  8. Apenas para retificar uma passagem acima sobre a diferença entre normas jurídicas primárias e secundárias na concepção de Kelsen, cabe salientar que, na concepção de Kelsen, a sanção é um elemento tão basilar ao ordenamento jurídico que, durante muito tempo, ele defendeu que a norma jurídica primária seria justamente a norma que prevê a consequência jurídica a ser aplicada no caso de descumprimento da norma jurídica secundária, que seria a norma que estabelece, preceitua, autoriza ou veda determinado comportamento. Tal concepção somente foi alterada e suprimida a partir de sua obra póstuma Teoria Geral das Normas (1986).

    E como conclusão do texto, cabe acrescentar que:

    O que parece de suma importância é o desenvolvimento e sedimentação da autonomia como base de fundamentação do ordenamento jurídico(contraposta à heteronomia e à coercitividade).

    Por autonomia entenda-se a busca pela persuasão e convencimento dos cidadãos por meio da demonstração da racionalidade das normas jurídicas, de modo que os sujeitos ajam e cumpram as normas jurídicas de modo espontâneo, pois veem os benefícios de atuar conforme os preceitos normativos, e não porque são obrigados a agir, devido ao receio de sofrerem um mal, que consiste na imposição de uma sanção travestida de consequência jurídica pelo discurso formalista positivista.

  9. Em linhas que escrevo sobre artigo que será publicado, abordo a questao do texto acima, nao com conteudo tão filosofico, mas em sentido juridico-positivo. Exatamete no que concerne as decisoes “solipsistas”, numa analise, da imparcialidade de que as proferem. Penso eu, no meu artigo, que a imparcialidade esta fora da condição humana. Daí segue que existe duas formas de imparcialidade: a) uma imparcialidade positiva – norteada pela lei e jurisprudencia, e b) uma imparcialidade negativa – de acordo com convicções pessoais de quem decide. Assim, aquela – imparcialidade positiva – consiste no esforço do magistrado em aplicar a lei de acordo com o direito positivado se valendo por vezes do direito consuentudinario encartados em sumulas das Corte da Cidadania (STJ) e da Corte Constitucional (STF), e esta – imparcialidade negativa – consiste em julgamento pelos magistrado de acordo com convicções pessoais – foro intimo.
    Tal texto é bem interessante porque migro para meu artigo – citando o douto autor – as conclusões que foram feitas, e fico me perguntando. Se a verdade existe por sí só, ou é fruto de uma construção de exegese.

  10. A distinção pretendida pelo comentarista entre imparcialidade positiva e negativa é evidentemente uma ilusão. Afinal, “uma imparcialidade positiva – norteada pela lei e jurisprudencia, e uma imparcialidade negativa – de acordo com convicções pessoais de quem decide” são uma só e mesma coisa, porque a primeira pressupõe a segunda e a segunda a primeira. Não existe interpretação sem mediação do sujeito.

  11. É muito conveniente falar de resposta constitucionalmente correta quando se tem uma Constituição democrática. Mas o que faríamos se tivéssemos, como em muitos países orientais, Constituições não-democráticas?

  12. Este artigo está respondido amiúde pelo prof. Lenio Streck na SEGUNDA EDIÇÃO do “O que é isto – decido conforme minha consciência?”, para o qual recomendo a leitura. Lenio, ao que consta, responde as dúvidas de Paulo Queiroz.

  13. Caro Fabiano:
    Obrigado pela indicação; eu não sabia que o Prof. Lenio havia responido à crítica que fiz ao livro.
    Acabei lê-lo na parte em que me replica. Apesar da elegância da réplica, confesso que fiquei um tanto frustrado, uma vez que o novo texto não responde as questões essencias (e bastante simples de enfrentar e responder) por mim formuldas. No fundo, a réplica do prof.Lenio se limitou a aspectos acidentais, mais exatamente, a minha leitura de alguns autores (Kelsen, Abel), como se isso, por si só, desautorize as citações. E mais: como se não pudéssemos nos valer, à semelhança de Foucault, dos autores como “caixa de ferramentas”.De mais a mais, também aqui a interpretação do Prof. Lenio não é a única, nem necessariamente a melhor ou mais correta, mas apenas isso: uma interpretação a mais. Repito que a eventual correção da interpretação não é uma qualidade da interpretação mesma, mas uma relação (logo, também uma interpretação) entre o sujeito e aquilo que interpretamos. Pensei em fazer uma tréplica, mas não vi motivo para tanto.
    ATT, Paulo Queiroz

  14. Êta livrinho confuso este “O que é isto? – decido conforme minha consciência?” Não vi coisa alguma a mais nele. É um livro confuso e em certa medida contraditório. Desce o porrete nos juízes, tachando-os de “solipsistas”, mas rende todas as homenagens para uma doutrina que, no fundo, no fundo, também decide conforme a própria consciência. É um livro equivocado. O problema não é decidir conforme a própria consciência. Decidir conforme ela, aliás, pode ser importante em muitas situações. Estar consciente é ter conhecimento do mundo, não importa o grau deste conhecimento. Não é isto, portanto, o que de fato importa. O que realmente importa é ter mecanismos de controle democrático sobre decisões individuais (sejam elas tomadas com a consciência ou não) que tem efeito coercitivo sobre a vida, o patrimônio e os destinos de outras pessoas. Acho que é por aí.

  15. O que o prof. Lenio afirma, em última análise, é que o que os outros dizem ou fazem sobre o direito é um ato de vontade, mas o que ele diz ou faz sobre o direito não é um ato de vontade…

  16. Penso que o que o prof. Lenio perfilha – inobstante o emaranhado de palavras e teses sofisticadas – é o respeito à Constituição Federal. E não há nada de equivocado nisso.
    E creio que existe, sim, a possibilidade de uma resposta constitucionalmente adequada. Ora, se se perfilha – e isto consta de quase todos os livros e teses jurídicas – que a Constituição Federal é o ápice do ordenamento pátrio, por qual motivo ela não é respeitada, no momento de prolatar uma decisão?

  17. Caros colegas, apreciei o artigo do Professor Paulo Queiroz e sua minuciosa crítica ao entendimento do Professor Lenio Luiz Streck, no que concerne a sua visão, diria, constitucional não solipsista do Direito. Acho interessante que, apesar da constante defesa da consolidação do Estado Democrático de Direito, e, além disto, da autonomia do Direito, enquanto disciplina científica e não conhecimento vulg(o)arizado, verifico posições que colocam o Direito como algo que pode ser decidido discricionariamente por Juizes, Ministros e Magistrados. Parece-me que permanecemos tempos e tempos na graduação para aprendermos a brincar de ditado, aceitando, sem contestar, pensar ou refletir, o que é decidido por um Juiz, ou como foi referido, interprete.
    Afinal, no jogo de ditado temos que aprender que tudo é relativo, não existe uma verdade e, como mesmo falou o professor, “E se existem apenas perspectivas sobre a verdade, não existe, por conseguinte, a verdade; consequentemente, não existe a resposta constitucionalmente adequada (ou correta etc.), mas apenas perspectivas sobre a resposta constitucionalmente adequada. A resposta constitucionalmente adequada/correta é uma ficção inútil.”. Depois de ler isso, pergunto-me timidamente, afinal estudo para re-petir o que um Juiz diz, e o que acabou de ser falado não é uma verdade, para a referida teoria? Ou, conforme pregou Professor Miguel Reale, seria um pressuposto necessário? Esse pressuposto necessário não seria verdadeiro? Devo ter compreendido errado…
    Além disso, como pode não existir verdade, e a interpretação ser um ato de vontade? Ora, isso que acabei de falar não seria uma verdade?
    O problema é, justamente, o dogmatismo contemporâneo, mascarados nas escolas subjetivistas. Esquecemos a linguagem, à pré-compreensão que adquirimos no viver. Nenhum destes esta a nossa disposição, pois o adquirimos no decorrer de nossa vivencia. A linguagem é algo fantástico, que por vezes nos faz esquecer o óbvio. Ora, quando falo em Estado Democrático de Direito, refiro-me a um Estado que foi constituído democraticamente, esta constituição se dá por uma constituição, ou constitui-a-ação, democrática, conforme dispõe Canotilho. Então como democrática, não podemos sustentar que ela não possui sentido, até porque se assim fosse, penso que ainda estaríamos desconstituídos. A constituição possui, sim, sentido, cabe o interprete tentar alcança-lo, fechando os olhos para sua consciência, individual, que quebraria a democraticidade da constituição, e abrindo para as relações sociais, para a constituição, tentando aplicar, interpretando, a norma constitucional ao caso concreto. Levemos o texto à sério, o tratemos como um evento, pontuando que o ser, que interpreta, deve se adequar a ele, e não o oposto.

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