Contra a prisão

30 de setembro de 2019

Nosso elenco das penas restritivas de direito é ainda bastante pobre e as possibilidades de substituição muito tímidas (CP, art.44), especialmente se considerarmos, entre outras, a reforma da Lei n° 12.403/2011, que alterou o CPP e admitiu mais de dez medidas cautelares diversas da prisão (CPP, art. 319), as quais poderiam perfeitamente ser transformadas em penas restritivas de direito: monitoramento eletrônico, suspensão de atividades etc. O autor de crime de roubo (CP, art. 157), por exemplo, que estivesse sob monitoração eletrônica, poderia ser condenado, não à pena de prisão, mas à pena de monitoramento, desde que preenchidos determinados requisitos, fazendo-se a detração da pena. Assim, se condenado a 6 anos de monitoramento, far-se-ia a detração dos 2 anos já nessa condição, cumprindo o restante da pena fora da prisão (4 anos). No sistema atual, porém, por melhor que seja seu comportamento em liberdade, o condenado teria de ser levado à prisão.

Além disso, a prisão deveria deixar de ser a pena principal e passar a ser uma pena alternativa ou substitutiva, invertendo a lógica atual, razão pela qual a pena privativa da liberdade, tal como a prisão preventiva, deveria ser a ultima ratio do sistema penal. A progressiva descarcerização há de levar também em conta o sistema integrado de direito penal, já mencionado na introdução.

É certo, ainda, que a pena de prisão é a mais violenta forma de intervenção sobre a liberdade do indivíduo, razão pela qual a sua imposição somente deveria ocorrer em casos extremos, isto é, quando não fossem suficientes outras medidas menos lesivas e mais adequadas.

Como há muito se reconhece, o problema da prisão (provisória ou definitiva) é a própria prisão, ambiente artificial, hostilíssimo e nocivo sob todos os aspectos, onde se dão violações sistemáticas de direitos humanos básicos, instituição que não é nem sequer capaz de assegurar (no Brasil) o direito à vida e à integridade física, tantos são os motins, as rebeliões e as guerras entre facções rivais, por exemplo. A prisão tampouco reeduca, mas corrompe e embrutece, não ressocializa, mas dessocializa, nem impede o cometimento de novos crimes, mas os potencializa; logo, não é (no mais das vezes) um meio de prevenir delitos, em caráter geral ou especial, mas um estímulo à reincidência.

Em resumo, já é tempo de reconhecer-se que a prisão de fato faliu como instituição, devendo passar a constituir pena alternativa, perdendo o caráter de pena principal, limitando-a aos casos de crimes hediondos violentos ou envolvendo réus multirreincidentes.

Como escreve Ferrajoli, a prisão é uma contradição institucional, que pode e deve ser radicalmente reduzida:

Com a prisão, o condenado é muito frequentemente jogado num inferno, vale dizer, numa sociedade selvagem, abandonada ao jogo livre das relações de força e de poder entre os presos e ao desenvolvimento de uma criminalidade prisional incontrolada, que é imposta sobre os presos mais fracos e indefesos. Dentro dos muros da prisão, todo arbítrio, toda violência, toda violação de direitos e toda lesão da dignidade humana das pessoas são possíveis. De fato, na maioria das prisões, os presos estão literalmente em condições de sujeição – aos carcereiros e ao grupo de poder que se forma entre os reclusos – e toda a vida é disciplinada por regras e práticas em parte escritas e em grande parte não escritas, que fazem de qualquer prisão uma prisão completamente diversa de outra, de toda pena una pena diversa de outra, de cada preso um preso diversamente discriminado ou privilegiado relativamente aos demais: pela diferença em matéria de espaços comuns, de habitabilidade das celas, de duchas, de horários e de pátio, de ar, de condições higiênicas e sanitárias. Em suma, a prisão é sob diversos aspectos uma contradição institucional.

(…).

É uma instituição criada pela lei, mas na qual se desenvolve o próprio governo das pessoas. É um lugar confiado ao controle do Estado, mas em cujo interior não vigoram controles legais, mas sobretudo a lei do mais forte: a lei da força pública dos agentes penitenciários e a força privada dos presos prepotentes e organizados. É uma instituição pública dirigida à custódia dos cidadãos, mas que não consegue garantir os direitos fundamentais mais elementares, a começar pelo direito à vida. Cria uma vida completamente artificial produzida pelo direito, mas que de fato reproduz no seu interior o estado de natureza, sem regras e sem direito, onde sobrevive o homo homini lupus e onde a máxima segurança externa é acompanhada da máxima insegurança interna1.

Mais: o Brasil ocupa hoje o terceiro lugar entre os países que mais encarceram, tendo atualmente mais de 700 mil presos2 recolhidos, na maior parte das vezes, em estabelecimentos prisionais precários e superlotados, tendo o Supremo Tribunal Federal reconhecido, no julgamento da ADPF nº 347, que, dado o quadro de superlotação, condições desumanas de custódia, violação massiva e reiterada de direitos fundamentais e insuficiência das políticas públicas implementadas, o sistema carcerário nacional pode ser caracterizado como um “estado de coisas inconstitucional”, a exigir atuação de todos os poderes conforme se vê da transcrição a seguir:

CUSTODIADO – INTEGRIDADE FÍSICA E MORAL – SISTEMA PENITENCIÁRIO – ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL – ADEQUAÇÃO. Cabível é a arguição de descumprimento de preceito fundamental considerada a situação degradante das penitenciárias no Brasil. SISTEMA PENITENCIÁRIO NACIONAL – SUPERLOTAÇÃO CARCERÁRIA – CONDIÇÕES DESUMANAS DE CUSTÓDIA – VIOLAÇÃO MASSIVA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS – FALHAS ESTRUTURAIS – ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL – CONFIGURAÇÃO. Presente quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas e cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária, deve o sistema penitenciário nacional ser caraterizado como “estado de coisas inconstitucional”. FUNDO PENITENCIÁRIO NACIONAL – VERBAS – CONTINGENCIAMENTO. Ante a situação precária das penitenciárias, o interesse público direciona à liberação das verbas do Fundo Penitenciário Nacional. AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA – OBSERVÂNCIA OBRIGATÓRIA. Estão obrigados juízes e tribunais, observados os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, a realizarem, em até noventa dias, audiências de custódia, viabilizando o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contado do momento da prisão.
(ADPF 347 MC, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 09/09/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-031 DIVULG 18-02-2016 PUBLIC 19-02-2016).

1Revista Crítica Penal y Poder 2016, nº 11 Septiembre (pp.1-10) Observatorio del Sistema Penal y los Derechos Humanos Universidad de Barcelona.

2 Dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), do Ministério da Justiça, publicados em 08/12/2017, referentes aos anos de 2015 (dezembro) e 2016 (até junho).

Disponível em: <http://depen.gov.br/DEPEN/noticias-1/noticias/infopen-levantamento-nacional-de-informacoes-penitenciarias-2016/relatorio_2016_22111.pdf>

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Comentários

  1. Ótima reflexão do professor e amigo Paulo de Souza Queiroz sobre as medidas alternativas ao pior de todos os suplícios (des) humanos: a prisão!

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