Conceito de Direito (revisto)

8 de junho de 2015

Três graus de latitude modificam toda a jurisprudência, um meridiano decide acerca da verdade. Curiosa justiça que um rio delimita! Verdade aquém dos Pirineus, erro além. O latrocínio, o incesto, o assassinato das crianças, tudo encontrou seu lugar entre as ações virtuosas. Pode haver algo de mais absurdo que um homem ter o direito de matar-me porque mora do outro lado do rio, e seu príncipe é contendor com o meu, embora eu nada tenha contra ele? Pascal. Pensamentos sobre política. São Paulo: Martins Fontes, 1994, aforismo 76.

O que a tradição nos legou com o nome de Direito não é uma coisa, isto é, não tem uma essência, uma substância; não existe ontologicamente, independentemente da representação que fazemos a seu respeito, porque constitui uma criação humana, que nasce e morre com o homem, ou seja, o direito não é sólido, nem líquido, nem gasoso, nem animal, nem vegetal.1

Com efeito, “aquilo que uma teoria do direito objetiva como direito”, são palavras de François Ewald, “como natureza do direito, como essência do direito, não tem existência real. O Direito – demos-lhe maiúsculas – não existe. Ou antes, não existe a não ser como um nome que não reenvia a um objeto, mas serve para designar uma multiplicidade de objetos históricos possíveis – que, como realidades, não têm os mesmos atributos, e que podem mesmo ter atributos irredutíveis”,2 de sorte que, assim como não existem fenômenos morais, mas uma interpretação moral dos fenômenos,3 tampouco existem fenômenos jurídicos, mas só uma interpretação jurídica dos fenômenos, pois nada é onticamente jurídico, lícito ou ilícito, mas socialmente construído. Em direito nada é dado; tudo é construído.

Em conclusão, o direito é o que dizemos que ele é, porque o direito, como de resto quase tudo que diz respeito ao homem, não está no fato ou na norma em si, mas na cabeça das pessoas, de modo que podemos afirmar, parafraseando o Evangelho (Lucas, 17:21), que o reino do direito está dentro de nós, e que nós o criamos e recriamos permanentemente, dando-lhe distintos significados a cada momento de sua produção segundo um dado contexto histórico-cultural. Dito de outra forma: o direito e o não direito, tal qual o justo e o injusto, o pio e o ímpio, o moral e o imoral, o ético e o estético, é em nós que ele existe!4

Daí que o direito, como o poder, não é uma coisa, mas relações/interações/interpretações/decisões, que é algo que se exerce, que se efetua, que funciona como uma máquina social que não está situada em um lugar privilegiado ou exclusivo, mas se dissemina por toda a estrutura social.5 Constitui, por isso, uma grande simplifica­-
ção supor que o Estado seja a única fonte de direito ou que o direito se esgote no direito legislado,
6 já que cada um carrega dentro de si seus microssistemas jurídicos, e os faz, ou tenta fazê-los prevalecer, nos seus espaços de interação/exercício de poder.

Dizemos, por exemplo, o direito penal, primeiro, por meio dos processos de criminalização primária que vão culminar na edição de uma lei que diga o que é e não é crime, porque assim o exige o princípio da legalidade (CF, art. 5º, XXXIX); segundo, por meio dos processos de criminalização secundária, isto é, através das ações e reações das pessoas e instituições direta ou indiretamente envolvidas com o crime (Judiciário, Ministério Público, polícia etc.).

Assim, se não há crime (nem pena) sem lei anterior que o defina, segue-se que, por mais que uma determinada conduta humana seja imoral e socialmente reprovável, se não houver lei que a declare criminosa, criminosa não é, sendo jurídico-penalmente irrelevante. É a lei, portanto, que cria o crime, é a lei que cria o criminoso. Numa palavra: só é crime o que o legislador diz que é.7

Mas esse discurso aí não cessa, porque prossegue por meio dos processos de definição e reação social, isto é, os processos de criminalização secundária, que nada mais são do que um continuum daquele. É que de um certo modo a lei nada prescreve, proíbe ou permite, pois a lei prescreve, proíbe ou permite o que dizemos que ela prescreve, proíbe ou permite, de sorte que a lei diz o que dizemos que ela diz.8

Aliás, e conforme assinala Umberto Eco, “um texto, uma vez separado do seu emissor (bem como da intenção do seu emissor) e das circunstâncias concretas da sua emissão (e de seu referente implícito), flutua no vácuo de um espaço potencialmente infinito de interpretações possíveis. Consequentemente, texto algum pode ser interpretado segundo a utopia de um sentido autorizado fixo, original e definitivo. A linguagem sempre diz algo mais do que o seu inacessível sentido literal, o qual já se perdeu a partir do início da emissão textual”.9

É que o sentido das coisas (fatos, provas, textos etc.) não é dado pelas próprias coisas, mas por nós, ao atribuirmos um determinado sentido num universo de possibilidades – aí incluída a falta de sentido inclusive.10

Justamente por isso, matar, roubar ou estuprar pode ser conforme o direito, inclusive, porque o que seja “matar”, “roubar” ou “estuprar”, e as possíveis formas de legitimação dessas ações (legítima defesa etc.) e de isenção de culpa (doença mental etc.) não estão previamente dadas, apesar de existir grande consenso sobre tais assuntos.11 O direito é, pois, uma construção social relativamente arbitrária que, como tal, pode em tese compreender qualquer conteúdo, motivo pelo qual nada existe a priori que não possa ser direito. Também por isso, o direito – sobretudo o penal – pode eventualmente legitimar formas muito cruéis de violência sem que percebamos como tal.

Mais concretamente: a lei prescreve que o crime de estupro consiste em constranger alguém à prática de conjunção carnal ou outro ato libidinoso, mediante violência ou grave ameaça (CP, art. 213); parece óbvio saber em que consiste o crime, pois. No entanto, práticas sadomasoquistas podem ser consideradas criminosas? Não faz muito tempo, autores importantes afirmavam que o marido não podia responder por crime de estupro contra a esposa, porque, diziam, entre os direitos inerentes ao casamento estava o de o marido poder dela dispor sexualmente, razão pela qual não lhe era dado oferecer resistência lícita.12 Ainda hoje, parte da doutrina entende que é possível estupro nesse caso, mas desde que a esposa “tenha justa causa para a negativa”.13

Não bastasse isso, o Código equipara a estupro violento o estupro de vulnerável, isto é, praticado contra menores de catorze anos (CP, art. 217A)14 ou contra pessoa que padeça de deficiência mental etc., o que significa dizer que muitos namoros poderão ser interpretados como autênticos estupros, ainda quando se passem entre menores ou entre pessoas também portadoras de alguma deficiência mental. Finalmente, o que significa ou pode significar constranger?

Consideremos outro exemplo. A Constituição veda, expressamente, as penas de morte e cruéis (CF, art. 5º, XLVII).15 Mas o que vem a ser pena de morte ou pena cruel? A resposta não é tão óbvia como parece.

É evidente que haverá pena de morte sempre que um juiz ou um tribunal proclamar a culpa de um réu e condená-lo à pena capital, seja com um tiro de fuzil, seja por enforcamento, seja por qualquer outro meio. A pena de morte é, enfim, um homicídio levado a cabo pelo Estado, legalmente. Mas veja: o art. 303, § 2º, da Lei nº 7.565, de 19 de dezembro de 1986 (Código Brasileiro de Aeronáutica), alterada pela Lei nº 9.614/98, bem assim o Decreto nº 5.144, de 16 de julho de 2004, que o regulamentou, previu a destruição de aeronaves “hostis ou suspeitas de tráfico de substâncias entorpecentes e drogas afins”. Pergunta-se: não seria isso pena de morte/cruel por juízo de exceção, constitucionalmente vedada?

Pois bem, apreciando petição que arguia a inconstitucionalidade (não recepção) da aludida legislação, o Procurador-geral da República, contrariamente, assinalou que “a medida de destruição não guarda relação com a pena de morte. Aliás, sequer pode ser considerada uma penalidade, porquanto não se busca, com sua aplicação, a expiação por crime cometido. Em realidade constitui, essencialmente, medida de segurança, extrema e excepcional, que só reclama aplicação na hipótese de ineficácia das medidas coercitivas precedentes. É importante frisar que tal medida tem por objeto a preservação da segurança nacional e a defesa do espaço aéreo brasileiro”.16

Esse exemplo também demonstra, claramente, que o direito é uma dimensão do poder, afinal diz o direito quem tem atribuição (poder) para tanto, inclusive porque é o poder que dá nome, sentido e limite às coisas, motivo pelo qual só é direito o que o poder reconhece como tal.17 E tem razão Pierre Bourdieu quando afirma que “o que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja produção não é da competência das palavras”.18

Aliás, a própria pena privativa da liberdade, que em geral consiste no encarceramento do sujeito por anos a fio num ambiente antinatural (artificial), em espaço físico minúsculo, superlotado, sem salubridade, privado quase que integralmente de contato com o mundo exterior, não seria ela mesma pena cruel? Não seriam as medidas de segurança uma forma disfarçada de sequestro por tempo indeterminado? E que dizer de certas formas de “sacrifício” (v. g., de gêmeos ou deficientes físicos e mentais) e rituais de antropofagia ainda praticados por algumas tribos brasileiras?

Ademais, nenhum comportamento é criminoso em si mesmo, tudo dependendo das reações que desencadeia ou não desencadeia. Assim, se um pai sabe que seu filho lhe subtraiu valores, provavelmente não tomará isso como um fato criminoso, isto é, furto, por isso não procurará a polícia, não fará funcionar a máquina estatal; tudo não passará de um problema de família e resolvido em família.19 O próprio Código Penal (art. 181, II) prevê isenção de pena sempre que o crime for praticado contra ascendente ou descendente.

E certamente reações diversas teriam lugar se, ao invés de um filho, fosse autora do fato a empregada doméstica ou um estranho. De modo similar, o tráfico pressupõe que a droga seja ilícita, as quais são assim definidas pelo Ministério da Saúde um tanto arbitrariamente, dentro de um universo (vastíssimo) de drogas capazes de produzir dependência física ou psíquica, estando excluídos, por exemplo, álcool, tabaco etc. Mais: o assédio sexual (CP, art. 216-A), embora praticável (em tese) por qualquer pessoa, é um típico crime masculino (só praticável por homem e não por mulher), pois é muito raro um homem interpretar o assédio feminino como algo ofensivo ou criminoso.20

Convém repetir, portanto: o que chamados direito são relações, interações, interpretações, decisões de poder. O direito é um momento da experiência do homem no mundo.21

Exatamente por isso, não se pode determinar a priori o que é o direito, quais são as práticas que assim devem ser qualificadas; porque isso depende daquilo que é refletido como direito no quadro de determinadas experiências jurídicas.22

Logo, o direito não é só o que o legislador diz que é; é também o que os juízes dizem que é, a partir e segundo múltiplos discursos de atores sociais múltiplos;23 é, pois, um discurso, uma prática (social) discursiva,24 socialmente construída, variável no tempo e no espaço, mais ou menos previsível e, no caso penal (mas não só nele), arbitrariamente seletiva, porque o sistema penal recruta sua clientela quase sempre entre os grupos mais vulneráveis da população, notadamente autores de crimes patrimoniais (roubo etc.), típica criminalidade de rua, própria de sujeitos socialmente excluídos. “La ley es como las serpientes; solo pica a los descalzos.”25

Por isso que o direito não é apenas o que as normas dizem, mas também, e principalmente, o que dizemos que as normas dizem; não é só o dever-ser, mas o ser. Arthur Kaufmann tem razão, portanto, quando assinala que “só quando a norma e situação de vida, dever e ser, são postos em relação, em correspondência um com o outro, surge o direito real: o direito é a correspondência entre o dever e o ser. O direito é uma correspondência, não tem um caráter substancial, mas sim relacional, o direito no seu todo não é o complexo de artigos da lei, um conjunto de normas, mas sim um conjunto de relações”.26

Assim, supor que a lei é o próprio direito seria confundir o mapa com o território, o cardápio com a refeição;27 seria confundir, enfim, discurso e realidade, teoria e práxis, dever ser e ser, mesmo porque o direito constitui uma ideia, um conceito, que reenvia a outros tantos conceitos, que, à semelhança de compartimentos vazios, tem seus conteúdos preenchidos mais ou menos arbitrariamente pelas pessoas e autoridades que participam da sua construção social.28

Por isso, disse Nietzsche que, se houvesse uma escola para legisladores, seria importante ensinar que palavras como lei, direito, dever, propriedade e crime constituem em si mesmas uma abstração sem valor e à espera de conteúdo, cor e significado de acordo com as circunstâncias particulares que as incrementam.29

Naturalmente que, mesmo no âmbito jurídico-penal, ramo do direito em que a dogmática parece ter atingido maior nível de sofisticação, o recurso às categorias da tipicidade, ilicitude e culpabilidade não é capaz de desmentir o que se vem afirmar. É que, se sob o aspecto material o delito não existe, segue-se logicamente que também o seu conceito formal-analítico – crime como fato típico, ilícito e culpável – é socialmente construído, de sorte que uma dada conduta será criminosa somente quando dissermos (aceitarmos) que é, uma vez que tais categorias remetem a conceitos os mais variados: dolo, culpa, significância/insignificância, causalidade, legítima/ilegítima defesa, estado de necessidade/desnecessidade, coação física/moral/resistível/irresistível, obediência hierárquica, erro de proibição vencível/invencível, embriaguez voluntária/involuntária etc., os quais reenviam, por sua vez, a uma infinidade de conceitos outros, como vida, honra, patrimônio, agressão justa/injusta, intenção, previsão, consciência/inconsciência, boa/má-fé, prova lícita/ilícita, exigível/inexigível, valores, princípios etc.

Não bastasse isso, o manuseio de tais conceitos se faz por vezes de modo francamente arbitrário, como acontece, por exemplo, nos julgamentos pelo tribunal do júri, formado que é por leigos.

Daí dizer Castanheira Neves que “o direito é linguagem, e terá de ser considerado em tudo e por tudo como uma linguagem. O que quer que seja e como quer que seja, o que quer que ele se proponha e como quer que nos toque, o direito é-o numa linguagem e como linguagem – propõe-se sê-lo numa linguagem (nas significações linguísticas em que se constitui e exprime) e atinge-nos através dessa linguagem, que é”.30 De modo semelhante, Calmon de Passos ensinou: “Direito é uma palavra que não se refere a nenhum objeto material, algo suscetível de sensação ou percepção pelo homem, isto é, que ele possa ver, ouvir, aspirar, degustar ou tocar. Direito, portanto, é sentido e significação que o homem empresta ao seu agir e interagir, por conseguinte, enquanto sentido e significação, linguagem. Linguagem que objetiva definir ou determinar o que é lícito ou ilícito, proibido, devido ou facultado. Direito só se materializa, destarte, como linguagem.”31

No particular, Gadamer tem razão, portanto: “o ser que pode ser compreendido é linguagem”.32

Finalmente, Nietzsche escreveu: “minha sentença principal: não há nenhum fenômeno moral, mas, antes, apenas uma interpretação moral desses fenômenos. Essa interpretação é, ela própria, de origem extramoral”.33 E cabe parafraseá-lo: minha sentença principal: não há nenhum fenômeno jurídico – nem jurídico-penal –, mas, antes, uma interpretação jurídica – e jurídico-penal – desses fenômenos. Essa interpretação é, ela própria, de origem extrajurídica.

Consequentemente, não existem fenômenos criminosos (nem típicos, antijurídicos ou culpáveis), mas uma interpretação criminalizante dos fenômenos; e, portanto, uma interpretação tipificante, antijuridicizante e culpabilizante dos fenômenos.

A interpretação é, pois, o ser do direito; e o ser do direito é um devir.

1

. Calmon de Passos. Direito, poder, justiça e processo. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 67-68.


2

. Foucault, A norma e o direito. Lisboa: Vega, 1993, p. 160. De modo similar, Calmon de Passos afirma que o direito “enquanto apenas formulação teórica, enunciado normativo, proposição ou juízo, ainda não é o Direito”, pois “o Direito é o que dele faz o processo de sua produção. Isso nos adverte de que nunca é algo dado, pronto, preestabelecido ou pré-produzido, cuja aplicação é possível mediante simples utilização de determinadas técnicas e instrumentos, com segura previsão das consequências”, razão pela qual “O Direito, em verdade, é produzido a cada ato de sua produção, concretiza-se com sua aplicação e somente é enquanto está sendo produzido ou aplicado”. Direito, poder, justiça e processo. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 67-68). Não por outra razão, Oliver Wendell Holmes afirmava que o que o direito realmente faz é criar profecias sobre o que os tribunais farão de fato. Textualmente: “the propheties of what the courts will do in fact, and nothing more pretentious, are what I mean by the law”, apud Arthur Kaufmann, Filosofia do direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004.


3

. Nietzsche, Friederich. Para além do bem e do mal, trad. Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 92, aforismo 108.


4

. Só assim se explica, por exemplo, que, interpretando a Constituição americana, que vigora há séculos, tenha a Suprema Corte entendido, inicialmente, que o racismo era constitucional; mais tarde (década de 1950), passou-se a considerá-lo parcialmente inconstitucional; e, finalmente, a partir da década de 1970, prevaleceu o entendimento de que o racismo é inteiramente inconstitucional. O que mudou, se o texto da lei é o mesmo desde então? A resposta é: o homem que o interpreta!


5

. Roberto Machado. Por uma genealogia do poder, in Michel Foucault, Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1995, p. XIV.


6

. Não sem razão, Boaventura de Souza Santos refere, além do direito estatal ou territorial, o direito doméstico, o direito de proteção, o direito da comunidade e o direito sistêmico, classificação que não é exaustiva. O direito doméstico – grandemente informal – é o direito do espaço doméstico, o conjunto de regras, de padrões normativos e de mecanismos de regulação de conflitos que resulta da, e na, sedimentação das relações sociais do agregado doméstico; o direito da produção é o direito da fábrica ou da empresa, o conjunto de regulamentos e padrões normativos que organizam o quotidiano das relações do trabalhado assalariado: códigos de fábrica, regulamentos da linha de produção, códigos de condutas dos empregados etc.; o direito da comunidade, como sucede com o espaço da comunidade, é uma das fontes de direito mais complexas, na medida em que cobre situações extremamente diversas, podendo ser invocado tanto pelos grupos hegemônicos como pelos grupos oprimidos; finalmente, o direito territorial ou estatal é o direito do espaço da cidadania e, nas sociedades modernas, é o direito central na maioria das constelações de ordens jurídicas, sendo que, ao longo dos últimos duzentos anos, foi construído pelo liberalismo político e pela ciência jurídica como a única forma de direito existente na sociedade, in Crítica da razão indolente, São Paulo, Cortez, 2000, p. 290 e ss.


7

. Apesar disso, tem razão Niklas Luhmann quando, de uma perspectiva distinta, assinala que “o direito não se origina da pena do legislador. A decisão do legislador (e o mesmo é válido, como hoje se reconhece, para a decisão do juiz) se confronta com uma multiplicidade de projeções normativas já existentes, entre as quais ele opta com um grau maior ou menor de liberdade. Se não fosse assim, ela não seria uma decisão jurídica. Sua função, portanto, não reside na criação do direito, mas na seleção e na dignificação simbólica de normas enquanto direito vinculativo. Ele envolve um filtro processual, pelo qual todas as ideias jurídicas têm que passar para se tornarem socialmente vinculativas enquanto direito. Esses processos não geram o direito propriamente dito, mas sim sua estrutura em termos de inclusões e exclusões; aí se decide sobre a vigência ou não, mas o direito não é criado do nada. É importante ter em mente essa diferença, pois de outra forma a concepção do direito estatuído através de decisões pode ser ligada à noção totalmente errônea da onipotência de fato ou moral do legislador. É necessário, em outras palavras, diferenciar entre atribuição e causalidade. A proeminência especial do processo decisório (por instâncias legislativas ou por juízes) e sua relevância na positivação na vigência do direito não podem levar à interpretação como algo criativo ou causal; o direito resulta de estruturas sistêmicas que permitem o desenvolvimento de possibilidades e sua redução a uma decisão, consistindo na atribuição de vigência jurídica a tais decisões” Sociologia do direito, II. Rio de Janeiro: Biblioteca Tempo Universitário 80, 1985, p. 8.


8

. Por isso afirma Lênio Luiz Streck que não existem julgamentos de acordo com a lei ou em desacordo com ela, porque o texto normativo não contém imediatamente a norma (Müller), a qual é construída pelo intérprete no decorrer do processo de concretização do direito, de sorte que, quando o juiz profere um julgamento considerado contrário à lei, na realidade está proferindo um julgamento contra o que a doutrina e a jurisprudência estabelecem como arbitrário. Conclui então que “é necessário ter em conta que o Direito deve ser entendido como uma prática dos homens que se expressa em um discurso que é mais que palavras, é também comportamentos, símbolos, conhecimentos, expressados (sempre) na e pela linguagem. É o que a lei manda, mas também o que os juízes interpretam, os advogados argumentam, as partes declaram, os teóricos produzem, os legisladores criticam. É, enfim, um discurso constitutivo, uma vez que designa/atribui significado a fatos e palavras”, in Hermenêutica jurídica em crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1999, p. 210-211.


9

. Os limites da interpretação. S. Paulo: Editora Perspectiva, 2000, p. XIV. Apesar disso, e conforme sugere o próprio título do texto (os limites da interpretação), Umberto Eco entende, com razão, que há limites à interpretação, de sorte que nem toda interpretação é aceitável ou válida. Vide capítulo sobre interpretação. Algo similar se lê também em Gadamer: “A compreensão não é uma transposição psíquica. O horizonte de sentido da compreensão não pode ser limitado nem pelo que o autor tinha originalmente em mente, nem pelo horizonte do destinatário a que foi escrito o texto na origem. Por conseguinte, não é a partir daí que podem ser traçados os limites de seu sentido (…). Os textos não querem ser entendidos como expressão vital da subjetividade de seu autor (…). Conceitos normativos como a opinião do autor ou a compreensão do leitor originário não representam, na realidade, mais que um lugar vazio que se preenche de compreensão, de ocasião em ocasião. Gadamer, cit., p. 575-576. E Ricoeur: “graças à escrita, o discurso se liberta da tutela de intenção do autor, das circunstâncias e da orientação voltada para o leitor primitivo, sendo que a autonomia semântica que resulta dessa tripla libertação garante uma carreira independente do texto e abre para a interpretação um campo de exercício considerável.” Paul Ricoeur, in O justo e a essência da justiça, Instituto Piaget, Lisboa, 1995.


10

. Arthur Schopenhauer escreveu: “O mundo é a minha representação. – Esta proposição é uma verdade para todo ser vivo e pensante, embora só no homem chegue a transformar-se em conhecimento abstrato e refletido. A partir do momento em que é capaz de o levar a este estado, pode dizer-se que nasceu nele o espírito filosófico. Possui então a inteira certeza de não conhecer nem um sol nem uma terra, mas apenas olhos que veem este sol, mãos que tocam esta terra; em uma palavra, ele sabe que o mundo que o cerca existe apenas como representação, na sua relação com um ser que percebe, que é o próprio homem. Se existe uma verdade que se possa afirmar a priori é esta, pois ela exprime o modo de toda experiência possível e imaginável, conceito muito geral que os de tempo, espaço e causalidade que o implicam. Com efeito, cada um destes conceitos, nos quais reconhecemos formas diversas do princípio da razão, apenas é aplicável a uma ordem determinada de representações; a distinção entre sujeito e objeto é, pelo contrário, o modo comum a todas, o único sob o qual se pode conceber uma representação qualquer, abstrata ou intuitiva, racional ou empírica. Nenhuma verdade é portanto mais certa, mais absoluta, mais evidente do que esta: tudo o que existe, existe para o pensamento, isto é, o universo inteiro apenas é objeto em relação a um sujeito, percepção apenas, em relação a um espírito que percebe. Em uma palavra, é pura representação. Esta lei aplica-se naturalmente a todo o presente, a todo o passado e a todo o futuro, àquilo que está longe, tal como àquilo que está perto de nós, visto que ela é verdadeira para o próprio tempo e o próprio espaço, graças aos quais as representações particulares se distinguem umas das outras. Tudo o que o mundo encerra ou pode encerrar está nesta dependência necessária perante o sujeito, e apenas existe para o sujeito. O mundo é portanto representação”. O mundo como vontade e representação. S. Paulo: Contraponto, 2004, 2ª reimpressão, p. 9.


11

. Um exemplo extremo disso é a figura do agente infiltrado que nalguns países pode dispor de autorização (judicial e legal) para cometer toda sorte de crimes em nome do Estado, de modo que a lei que afaga é a mesma que apedreja. Como escreveu Pascal, “o latrocínio, o incesto, o assassinato das crianças e dos pais, tudo encontrou seu lugar entre as ações virtuosas. Pode haver algo de mais absurdo que um homem ter direito de matar-se porque mora do outro lado do rio, e seu príncipe é contendor com o meu, embora eu não tenha nada contra ele? Pensamentos sobre política. São Paulo: Martins Fontes, 1994.


12

. Assim, Nélson Hungria: “questiona-se sobre se o marido pode ser, ou não, considerado réu no estupro, quando, mediante violência, constrange a esposa à prestação sexual. A solução justa é no sentido negativo. O estupro pressupõe cópula ilícita (fora do casamento). A cópula intra matrimonium é recíproco dever dos cônjuges (…). O marido violentador, salvo excesso inescusável, ficará isento até mesmo da pena correspondente à violência física em si mesma (excluído o crime de exercício arbitrário das próprias razões, porque a prestação corpórea não é exigível judicialmente), pois é lícita a violência necessária para o exercício regular de um direito”, in Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 125-126. Assim também, Magalhães Noronha: “as relações sexuais são pertinentes à vida conjugal, constituindo direito e dever recíproco dos que casam. O marido tem direito à posse sexual da mulher, ao qual ela não pode se opor. Casando-se, dormindo sob o mesmo teto, aceitando a vida em comum, a mulher não se pode furtar ao congresso sexual, cujo fim mais nobre é o da perpetuação da espécie. A violência por parte do marido não constituiria, em princípio, crime de estupro, desde que a razão da esposa para não aceder à união sexual seja mero capricho ou fútil motivo, podendo, todavia, ele responder por excesso cometido”. Direito penal, v. 3. São Paulo: Saraiva, 27. ed., 2003.


13

. Damásio de Jesus. Direito Penal. Parte Especial, 3º volume, p. 96. São Paulo: Saraiva, 2002. Paulo José da Costa Júnior até recentemente defendia que mulher casada não pode ser vítima de estupro praticado pelo marido. Curso de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2008.


14

. Diz o referido artigo que incorre na pena de 8 a 15 anos de reclusão aquele que mantiver relações sexuais com menor de 14 anos (caput) ou praticar as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência (§ 1º).


15

. Dispõe o artigo: “não haverá penas: a) de morte, salvo no caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; e) cruéis.”


16

. Processo PGR 1.00.000.000836/2005-71, pronunciamento subscrito por Cláudio Lemos Fonteles, então Procurador-Geral da República, datado de 14-3-2005. Na representação formulada (também por mim subscrita), os autores sustentaram a violação dos seguintes princípios: a) inviolabilidade da vida (art. 5º, caput); b) proibição da pena de morte em tempo de paz (art. 5º, XLVII, a); c) presunção de inocência (art. 5º, LVII); d) proibição de juízo ou tribunal de exceção (art. 5º, XXXVII); e) devido processo legal (art. 5º); f) prevalência dos direitos humanos (art. 4º, II); g) defesa da paz (art. 4º, VI); h) solução pacífica dos conflitos (art. 4º, VII); i) repúdio ao terrorismo (art. 4º, VII); j) legalidade; l) proporcionalidade; e m) inviolabilidade da propriedade (art. 5º, caput).


17

. Nietzsche observou: “Assim nascem os direitos: graus de poder reconhecidos e assegurados. Se as relações de poder mudam substancialmente, direitos desaparecem e surgem outros – é o que mostra o direito dos povos, em seu constante desaparecer e surgir. Se nosso poder diminui substancialmente, modifica-se o sentimento daqueles que vêm assegurando o nosso direito: eles calculam se podem nos restabelecer a antiga posse plena – sentindo-se incapazes disso, passam a negar nossos “direitos” (…). Onde o direito predomina, um certo estado e grau de poder é mantido, uma diminuição ou um aumento é rechaçado. O direito dos outros é a concessão, feita por nosso sentimento de poder, ao sentimento de poder desses outros. Quando o nosso poder mostra-se abalado e quebrantado cessam os nossos direitos: e, quando nos tornamos muito mais poderosos, cessam os direitos dos outros sobre nós, tal como os havíamos reconhecido a eles até então.” NIETZSCHE, Frederich. Aurora. Reflexões sobre os preconceitos morais. 1ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 83.


18

. Pierre Bourdieu. O poder simbólico. Rio: Bertrand Brasil, 1998, p. 15.


19

. Um caso real bem ilustra isso: A foi flagrada por abusar sexualmente de sua filha (B), de dois anos, e por isso foi presa, processada e condenada a 7 anos e 6 meses de reclusão por crime de atentado violento ao pudor (CP, art. 214, agora revogado), crime hediondo (Lei nº 8.072/90). O exame criminológico assim a diagnosticou: “personalidade primitiva, com nível mental baixo e consequente imaturidade intelectual e afetiva, que motivam os comportamentos regressivos que emite e que demonstram a dificuldade de adaptação ao meio social. Evidencia baixo nível de tolerância às frustrações, às quais reage com atitudes oposicionistas e agressivas, manifestadas através de descargas emocionais intensas, que refletem a dificuldade de controle sobre os impulsos. Em consequência, o processo de interrelação social torna-se difícil, sobretudo quando adota atitudes de supervalorização de si mesma como uma forma de compensar o sentimento de inferioridade que procura dissimular.” Ora, tivesse essa história se passado numa família de classe média ou alta, outro seria o desfecho: certamente, a família submeteria A a tratamento psicológico/psiquiátrico, a sessões de análise ou semelhante, e, no máximo, tiraria dela, provisória ou definitivamente, a guarda da criança (B). Assim, não haveria polícia, nem crime, nem pena, nem prisão; tudo não passaria de um “problema de família” e resolvido em família.


20

. Becker escreveu: “os grupos sociais criam desvio ao fazer as regras cuja infração constitui desvio e ao aplicar essas regras a pessoas particulares e rotulá-las como outsiders. Desse ponto de vista, o desvio não é uma qualidade do ato que a pessoa comete, mas uma consequência da aplicação por outras de regras e sanções a um infrator. O desviante é alguém a quem esse rótulo foi aplicado com sucesso. O comportamento desviante é aquele que as pessoas rotulam como tal. (…) Se um ato é ou não desviante depende, portanto, de como outras pessoas reagem a ele (…). O grau em que um ato será tratado como desviante depende também de quem o comete e de quem se sente prejudicado por ele. (…) Desvio não é uma qualidade que reside no próprio comportamento, mas na interação entre a pessoa que comete um ato e aqueles que reagem a ele.” Howard S. Becker. Outsiders. Estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 21 e ss.


21

. Gadamer. Verdade e Método, cit., p. 31. Nietzsche escreveu: “todo conhecimento humano é ou experiência ou matemática”. Nietzsche. Aforismo 530. Vontade de Poder. Rio: Contraponto, 2008, p. 279.


22

. François Ewald, Foucault, a norma e o direito, cit., p. 161.


23

. Por essas e outras razões, Rosa Maria Cardoso da Cunha atribui ao princípio da legalidade um caráter puramente retórico, pois não cumpre as funções que lhe são cometidas pela dogmática; antes, desempenha uma função retórica que orienta a interpretação, a aplicação e a argumentação referida à lei penal. Textualmente: “o princípio da legalidade dos delitos e das penas não constitui uma garantia essencial do cidadão em face do poder punitivo do Estado. Não determina precisamente a esfera da ilicitude penal e, diversamente do que afirma a doutrina, não assegura a irretroatividade da lei penal que prejudica os direitos do acusado. Tampouco estabelece a lei escrita como única fonte de incriminação e penas, impede o emprego da analogia em relação às normas incriminadoras ou, ainda, evita a criação de normas penais postas em linguagem vaga e indeterminada.” O caráter retórico do princípio da legalidade. Porto Alegre: Síntese, 1979, p. 17 e 128.


24

. No sentido do texto, Carlos Maria Cárcova escreve que “frente aos tradicionais reducionismos da teoria jurídica (normativismo/facticismo) sustentamos a tese de que o direito deveria ser entendido como discurso, com o significado que os linguistas atribuem a essa expressão, isto é, como processo social de criação de sentido – como uma prática social discursiva que é mais do que palavras –, que é, também, comportamentos, símbolos, conhecimentos; que é, ao mesmo tempo, o que a lei manda, os juízes interpretam, os advogados argumentam, os litigantes declaram, os teóricos produzem, os legisladores sancionam ou os doutrinários criticam e sobretudo o que, ao nível dos súditos, opera como sistema de representações”. Direito, Política e Magistratura. S. Paulo: LTr, 1996, p. 174.


25

. A frase procede, ao parecer, de Oscar Romero.


26

. Filosofia do direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, p. 219. Del Vecchio dizia, no entanto, a partir de postulados kantianos, que a noção universal do direito é anterior à experiência jurídica, aos fenômenos jurídicos singulares, sendo a experiência apenas a aplicação ou verificação daquela forma. Assim, “uma proposição só é jurídica na medida em que participar da forma lógica (universal) do Direito. Fora desta forma, indiferente ao conteúdo, nenhuma experiência jurídica é possível. Sem ela, falta a qualidade que permite adscrevê-la a esta espécie de experiência. A forma lógica do Direito é um dado a priori – ou seja, não empírico – e constitui, precisamente, a condição da experiência jurídica em geral”, in Lições de filosofia do direito, Coimbra, 1979, p. 344-345.


27

. A expressão é de Louk Hulsman.


28

. Não sem razão, Kelsen dizia, de uma perspectiva distinta, que “todo e qualquer conteúdo pode ser Direito. Não há qualquer conduta humana que, como tal, por força do seu conteúdo, esteja excluída de ser conteúdo de uma norma jurídica”. Teoria Pura do Direito. S. Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 221.


29

. In A minha irmã e eu. Editora Moraes: S. Paulo, 1992, p. 42-43. Não surpreende, por isso, que todos, sem exceção, e até mesmo organizações criminosas recorram, invariavelmente, à justiça, à liberdade, à paz etc., e não o contrário, a exemplo do assim chamado Primeiro Comando da Capital (PCC), cujo estatuto adota como princípios: “1. Lealdade, respeito e solidariedade acima de tudo ao Partido. 2. A luta pela liberdade, justiça e paz. 3. A união da luta contra as injustiças e a opressão dentro das prisões.” Diz ainda (9) que “o partido não admite mentiras, traição, inveja, cobiça, calúnia, egoísmo, interesse pessoal, mas, sim, a verdade, a fidelidade, a hombridade, a solidariedade e o interesse como o bem de todos, porque somos um por todos e todos por um”.


30

. Metodologia jurídica. Coimbra: Coimbra Editora, 1993, p. 90.


31

. Comentários ao Código de Processo Civil, vol. III. Rio de Janeiro, 2005, 9. ed., p. 1.


32

. Verdade e método. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 687.


33

. A vontade de poder, cit., p. 153.


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