Coisa julgada

24 de abril de 2019

1)Introdução

Com o trânsito em julgado a decisão judicial (não necessariamente sentença) torna-se irrevogável. A coisa julgada (material) é essa autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso (CPC, art. 502).

Além das sentenças condenatórias e absolutórias, fazem coisa julgada as decisões que absolvem o réu sumariamente (CPP, art. 397), por reconhecerem a presença de excludentes de tipicidade, de ilicitude ou de culpabilidade (legitima defesa etc.), bem como as que decretam a extinção da punibilidade (prescrição etc.).

No caso de decisão extintiva da punibilidade fundada em falsa certidão de óbito do agente, admite-se, contudo, o desarquivamento do processo ou do inquérito.

2)Coisa julgada formal?

É comum falar-se de coisa julgada formal – em verdade, uma forma de preclusão1 – , que ocorre no próprio processo em que a decisão é proferida, e em coisa julgada material, que é a coisa julgada propriamente dita, a qual implica a imutabilidade dos efeitos da sentença. A coisa julgada material pressupõe a coisa julgada formal.

A coisa julgada formal dá-se nos próprios autos em que a sentença é prolatada, podendo ser revista se houver o implemento de certas condições. Assim, por exemplo, a decisão de arquivamento do inquérito por falta de prova poderá ser modificada com o surgimento de novas provas que autorizem o oferecimento de denúncia (Súmula 524 do STF2).

A coisa julgada e a litispendência ocorrem quando se reproduz ação anteriormente ajuizada (CPC, art. 337, §1°) e cumprem a mesma finalidade: evitar bis in idem. Mas enquanto a coisa julgada exige trânsito em julgado da decisão, a litispendência pressupõe ações idênticas ainda em andamento, podendo ser reconhecidas de ofício ou a requerimento.

3)Recurso cabível e revisão criminal

A coisa julgada pode ser alegada ou reconhecida de ofício a qualquer tempo, mesmo na fase de execução da pena. A exceção de coisa julgada será processada em autos apartados e não suspenderá o andamento da ação penal (CPP, art. 111).

Da decisão que julgar procedente a exceção cabe recurso em sentido estrito (CPP, art. 581, III). Caberá, porém, apelação quando for reconhecida de ofício (CPP, art. 593, II). É irrecorrível a decisão que rejeitar a exceção, admitindo, no entanto, habeas corpus ou impugnação em apelação.

A res judicata é passível de rescisão por meio de revisão criminal ou de habeas corpus, mas com uma singularidade: somente a sentença penal condenatória e absolutória imprópria (que aplica medida de segurança) são passíveis de rescisão, no todo ou em parte, por se tratar de uma garantia do réu (CF, art. 5º, XXXVI).

Consequentemente, a sentença absolutória não admite revisão criminal ainda que presentes as graves hipóteses do artigo 966 do CPC, como concussão ou corrupção do juiz, razão pela qual até uma sentença penal absolutória comprada faz coisa julgada.

Daí dizer-se que é uma sentença soberanamente transitada em julgado. De acordo com a doutrina majoritária mesmo a sentença absolutória proferida por juiz incompetente faz coisa julgada3.

Só cabe, portanto, revisão criminal pro reo, não pro societate. Mas isso não significa que o Ministério Público, como defensor da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses individuais indisponíveis (CF, art. 127), também não possa propor a revisão criminal ou habeas corpus em favor do réu. O MP tem toda legitimidade para ajuizar tais ações, embora não seja comum fazê-lo.

A coisa julgada pode ser também superada ou atenuada por causas supervenientes, tais como: abolição do crime (abolitio criminis), lei posterior mais branda (novatio legis in mellius), anistia, indulto etc.

4)Requisitos da coisa julgada

Só existe coisa julgada quando há uma repetição da ação penal, vale dizer, os réus e os fatos são exatamente os mesmos. Mas é irrelevante quem figure como autor, se o MP ou o querelante. Absolvido o réu, nada impede que uma nova denúncia ou uma nova queixa seja proposta contra pessoa diversa (autor, coautor ou partícipe do crime), se e quando houver prova nesse sentido. Também não importa o pedido, que é sempre o mesmo: condenação ou aplicação de medida de segurança.

Nem sempre é fácil determinar se existe identidade de causa., porém, repetição da causa quando os fatos forem precisamente os mesmos, mas se pretender dar-lhes definição jurídico-penal diversa. Assim, se o MP denunciou alguém por crime de roubo, não pode pretender ver recebida nova denúncia por extorsão contra ele, ou alterar um homicídio simples para qualificado ou um furto por estelionato etc., ou o contrário. Existe, pois, coisa julgada independentemente da tipificação pretendida.

5)Limites da coisa julgada: casos especiais

5.1)Consumação no curso do processo

Nos crimes cuja consumação ocorrer durante a tramitação do processo, o MP (ou querelante) aditará a denúncia. Assim, por exemplo, quando houver denúncia por homicídio ou latrocínio tentado, e a vítima vier a morrer depois do seu oferecimento, o MP aditará a denúncia para imputar o crime na forma consumada e provar a relação de causalidade. Se, todavia, a morte se consumar após o trânsito em julgado da sentença condenatória, já terá feito coisa julgada por crime tentado, não podendo ser modificada.

5.2)Mutatio libelli

Quando o MP (ou querelante) deixar de aditar a denúncia na forma do artigo 384 do CPP (mutatio libelli), a sentença fará coisa julgada também em relação à imputação que poderia ser objeto do aditamento, mas que não o foi a tempo e modo (v.g., qualificadora ou causa de aumento de pena). Se houve aditamento, a coisa julgada se dará nos seus limites.

5.3)Coautoria e participação

Como regra, a coisa julgada não atinge coautores ou partícipes do crime que não figuraram no processo, razão pela qual podem ser criminalmente processados.

Quando, porém, se tratar de sentença absolutória cujo fundamento for aplicável ao coautor ou partícipe, faltará justa causa para a nova ação penal contra estes. Assim, por exemplo, se o juiz tiver reconhecido que o fato não constitui crime ou que o autor agiu em legítima defesa etc., faltará justa causa para se processar eventuais coautores ou partícipes.

A comunicabilidade ou não dos fundamentos da sentença absolutória dependerá da teoria adotada relativamente à coautoria/participação (teoria da acessoriedade limitada etc4.).

Como vimos, a decisão do recurso interposto por um dos réus, se fundado em motivos que não sejam de caráter exclusivamente pessoal, aproveitará aos outros (CPP, art. 580). Assim, por exemplo, se for reconhecido que o fato não constitui crime, a decisão se comunicará ao corréu que não apelou.

Discute-se se o réu absolvido como autor ou coautor de crime poderia figurar noutro processo na condição de partícipe ou o contrário. O STF já admitiu que, embora absolvido pelo tribunal do júri como executor de um homicídio, o réu poderia ser novamente processado como mandante desse mesmo delito, pois novas provas surgiram nesse sentido5.

Temos, porém, que essa variação da condição de autor para coautor ou partícipe, à semelhança da mudança da tipificação, não autoriza a rescisão da coisa julgada, razão pela qual a decisão que admite uma nova acusação pelo mesmo fato, ainda que com uma configuração penal diversa, é ilegal.

No caso apreciado pelo STF o que de fato houve foi a admissão pura e simples de nova denúncia com base em novos indícios de culpa do réu inocentado por falta de prova, como se a sentença do júri valesse apenas rebus sic stantibus.

Além disso, o Código Penal (art. 29) adotou, como regra, a teoria unitária ou monista, equiparando autores, coautores e partícipes, razão pela qual também por isso não cabe admitir-se novo processo.

Admitir nova acusação com esse fundamento é, pois, autorizar revisão criminal pro societate.

5.4)Concurso de crimes

Havendo continuidade delitiva (CP, art. 71), a denúncia compreenderá, em princípio, todas as infrações penais que a integram. Quando, porém, algum crime ficar de fora será objeto de processo próprio, procedendo-se, no caso de condenação, à soma ou à unificação das penas pelo juízo da execução6.

Parece-nos, todavia, que, quando for aplicado o aumento máximo previsto em lei (2/3 ou o triplo), faltará justa causa para um novo processo7. Afinal, uma nova condenação nada acrescentaria àquela já imposta, nem mesmo para efeito de prescrição, visto que o aumento da continuidade não conta para tanto (CP, art. 119 e Súmula 497 do STF8).

Quando a sentença for absolutória, a solução dependerá da fundamentação. Se, por exemplo, o juiz considerar que o fato não constitui crime ou o acusado não é o seu autor, a decisão obstará outro processo para apurar a continuidade. É que na continuidade delitiva, que não se confunde com a simples reiteração de infrações penais (concurso material), há um só crime e o subsequente é considerado mero desdobramento do primeiro. Logo, se faltar justa causa à acusação principal, faltará também à derivada (continuidade).

O que foi dito para o crime continuado vale, mutatis mudantis, para o concurso formal de crimes (CP, art. 70). É que também aqui o agente responde por um só crime, o mais grave, com pena aumentada. Incide, ainda, o artigo 119 do CP, não contando o aumento para fins prescricionais.

O concurso material de crimes (CP, art. 69) não oferece dificuldades especais, já que não impede novos processos e, havendo várias condenações, somar-se-ão ou unificar-se-ão as penas, respeitado o limite máximo de trinta anos (CP, art. 75).

5.5)Crime permanente e habitual

Quando houver condenação por crime permanente, isto é, delito cuja consumação se dilata no tempo por decisão do autor do fato, a coisa julgada impedirá novo processo por fatos que já integravam a permanência. Assim, se sobrevierem duas condenações contra o autor pelo mesmo crime de extorsão mediante sequestro (v.g., a vítima ficou em cativeiro em mais de uma cidade, gerando mais de uma investigação e processo), somente a primeira a transitar em julgado prevalecerá.

Havendo condenação por crime habitual, isto é, delito cuja consumação requer uma reiteração de atos (exercício ilegal da medicina etc.), a coisa julgada compreenderá os fatos noticiados na denúncia e outros não referidos, mas que compunham a habitualidade.

Como os tipos permanentes e habituais não são incompatíveis com o concurso de crimes – é possível, por exemplo, crime permanente continuado -, podem também suscitar os problemas já mencionados.

4.6)Superveniência de mais de uma condenação e coisa julgada inconstitucional

Quando houver mais de uma condenação pelo mesmo fato (bis in idem), prevalecerá a que primeiro transitou em julgado. Mas há precedente do STJ pelo prevalecimento da sentença mais favorável ao réu9.

Caberia discutir ainda se é possível falar-se de coisa julgada inconstitucional também em matéria penal. Assim, por exemplo, se seria rescindível decisão que decretou a prescrição de crime imprescritível (prática de racismo etc.).

1Nesse sentido, Daniel Mitidiero. Introdução ao estudo do processo civil. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 2004, p. 201 e ss. E também Antônio do Passo Cabral. Coisa julgada e preclusões dinâmicas. Salvador: editorajuspodivm, 2019.

2Súmula 524. Arquivado o inquérito policial, por despacho do juiz, a requerimento do promotor de justiça, não pode a ação penal ser iniciada, sem novas provas.

3Em sentido contrário, Fernando da Costa Tourinho Filho (Código de processo penal comentado. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 417): “…Sem embargo, entendemos que nesses casos não houve um desenvolvimento válido do processo. Quando se diz que os pressupostos processuais da existência são um órgão jurisdicional, uma entidade provida de capacidade processual e uma petição dirigida ao primeiro, é de supor esteja o Juiz regularmente investido de jurisdição. Do contrário, se um Juiz cível absolvesse um homicida e não houvesse recurso, a decisão seria válida; se um Juiz processasse e absolvesse um Promotor de Justiça, não havendo recurso, o julgamento seria válido. Nesses casos a relação processual não teria regularidade perante o direito, visto que a decisão foi proferida por um órgão desvestido do poder jurisdicional. Devessem tais decisões absolutórias ser válidas, a absurdez seria manifesta”.

4Ver Paulo Queiroz. Direito penal, parte geral. Salvador: editorajuspodivm, 2018.

5HC 64158-0/MG, de 1986, Relator Ministro Rafael Mayer.

6Solução diversa é proposta por Ney Fayet Júnior. Do crime continuado. Porto Alegre: livraria do advogado editora, 2.018.

7De modo similar, Fernando da Costa Tourinho Filho. Código de processo penal comentado. São Paulo: Saraiva, 2009.

8Súmula 497. Quando se tratar de crime continuado, a prescrição regula-se pela pena imposta na sentença, não se computando o acréscimo decorrente da continuação.

9STJ, HC 281.101-SP, Relator Min. Sebastião Reis Júnior, publicado em 24/11/2017.

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Comentários

  1. Felicito o ilustre autor: objetivo e preciso no trato de tema tão carente de atenção pela doutrina. O princípio da consunção (tudo que poderia ser imputado ao acusado, em referência a dada situação histórica e não o foi, jamais poderá vir a sê-lo) e os princípios da unidade e da indivisibilidade (o caso deve ser conhecido na sua totalidade – unitária e indivisivelmente – e, mesmo quando não o tenha sido, considerar-se-á irrepetivelmente decidido. STJ, HC 285.589), não mereceram atenção, assim como o “fato principal” (CPP, art. 110, § 2°), que nos delitos com “fictio juris” (permanentes, habituais e continuados), se configurar por qualquer dos desdobramento (atos afins ou conexos) do mesmo delito único (TRF-1, RSE 0044606-09.2014.04.01.3800). Também a célebre lição da saudosa ADA PELLEGRINI GRINOVER, acatada nos tribunais superiores, mereceria atenção, s.m.j.: “O crime habitual indica a reiteração da mesma conduta, de modo que a coisa julgada cobre todo o fato delituoso, em relação às ações anteriores do acusado. Mas, depois da sentença, podem ser praticadas novas condutas aptas a formar outro crime habitual e, nesse caso, será possível nova acusação, quando e se as novas condutas forem totalmente desligadas do conjunto de fatos anteriormente praticados. A clara unidade jurídica e material constitui uma única infração, não podendo o agente ser perseguido mais de uma vez.” (ADA PELLEGRINI GRINOVER, O Processo III – Coisa julgada penal, 1ª ed., DF, GJ, 2013, p. 92).

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