A doutrina, ao distinguir entrega e extradição, assinala, ordinariamente, que a extradição se dá entre Estados soberanos; a entrega, entre um Estado soberano e um tribunal internacional; a extradição de nacionais não é possível, mas a entrega o é.1
Pois bem, apesar da “diferença técnica”2, formal, portanto, entre os institutos, parece evidente que, materialmente, ambos implicam o mesmo tipo e grau de constrangimento à liberdade individual, tal qual a própria abdução, que consiste num seqüestro criminoso. Na verdade, se a extradição é a entrega de um indivíduo por um Estado a outro para aí ser julgado,3 força é convir que ela (a entrega) é uma espécie do gênero extradição, compreendida que está no seu conceito; ou, se preferir, a entrega é uma forma de extradição com nome diverso.
Se assim é, entrega e extradição deveriam estar subordinadas aos mesmos princípios e regras, em virtude de encerrarem a mesma sorte de constrangimento à liberdade e, pois, aos direitos e garantias individuais. Com efeito, a só alteração do nomen juris não pode ter o condão de legitimar certas práticas de violência institucional, ainda que admitidas a pretexto de castigarem violências maiores. Imagine-se, a propósito, o seguinte diálogo, um tanto surreal, entre o advogado e seu cliente: “fique tranqüilo, pois a Constituição brasileira não admite a extradição de nacionais ou, como regra, a de brasileiros naturalizados; você apenas será entregue ao TPI (Tribunal Penal Internacional), do qual faz parte seu país inclusive, e você só será condenado, no máximo, à prisão perpétua”, diz-lhe o advogado. “Nossa doutor, que alívio! Responde-lhe o incauto cliente.
Quanto ao fundamento de que a não-extradição de nacionais está ligado à possibilidade de a justiça estrangeira ser injusta,4 comumente invocado para legitimar a entrega, é evidente que tal é perfeitamente aplicável a toda e qualquer forma de justiça, internacional inclusive.
Mutatis mutandis, o mesmo deve ser dito quanto à possibilidade de aplicação de penas perpétuas pelo TPI, mesmo porque, do contrário, estar-se-ia, ainda que indiretamente, a atribuir status supraconstitucional a tratado internacional e a negar o caráter residual dessa jurisdição.
Evidentemente que, a ser admitida a prisão perpétua, obstáculo algum haveria à pena de morte e semelhantes, se assim dispuser o tratado.
Como se vê, os juristas são realmente uns tipos bem curiosos, que, à semelhança dos mágicos, parecem fazer ilusionismo por meio de palavras.
1Nesse sentido, Valério Mazzuoli: “daí estar correto o entendimento de que o ato de entrega é aquele feito pelo Estado a um tribunal internacional de jurisdição permanente, diferentemente da extradição, que é feita por um Estado a outro, a pedido deste, em plano de absoluta igualdade, em relação a indivíduo neste último processado ou condenado e lá refugiado. A extradição envolve sempre dois Estados soberanos, sendo ato de cooperação entre ambos na repressão internacional de crimes, diferentemente do que o Estatuto de Roma chamou de entrega, onde a relação de cooperação se processa entre um Estado e o próprio Tribunal.” Curso de Direito Internacional Público. RT: S.Paulo, 2007, p. 761.
2 Valério Mazzuoli. Curso de Direito Internacional Público. RT: S. Paulo, 2007, p. 762.
3De acordo com Hidelbrando Accioly, extradição é o ato mediante o qual um Estado entrega a outro indivíduo acusado de haver crime de certa gravidade ou que já se ache condenado por aquele, após haver-se certificado de que os direitos humanos do extraditando serão garantidos.” Manual de direito internacional público. S. Paulo: Saraiva, 2002, p. 398.
4 Valério Mazzuoli, cit. p. 761.
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Grande Paulo, esse seu comentário me fez lembrar o grande Shakespeare, em Romeu e Julieta: “O que há num simples nome? O que chamamos rosa com outro nome não teria igual perfume?” Abraços!
Caro Hélio, é justamente isso: troca de nomes para burlar as Constituições dos Estados que subscreveram o tratado, chamando de “entrega” a “extradição”. Apesar disso, dizem os autores que entrega e extadição são “coisas absolutamente distintas” (?). Abraço, PQ
Adorei o comentário, estou desenvolvendo meu TCC neste tema e gostei bastante do seu POST, se pudesse me direcionar pra algum outro material a respeito eu agradeceria. Abçs
Em caso de semelhante ilusionismo por meio de palavras, o Ministro Eros Grau reconheceu que o Ministério Público pode investigar. Entendeu que o que a CF proíbe é o MP instaurar Inquérito Policial, “apenas isso” (palavras suas). Disse que existem varias formas de investigação além do IP. Ou seja, o MP pode investigar, basta dar outro nome à investigação, que não Inquérito Policial. Se chamar de “procedimento investigativo criminal”, p. ex., o problema está resolvido.
Abraços Grande Mestre!
Fernando: a questão agora não é tão simples como ocorre na entrega/extradição; há divrsas outras questões a considerar.
Viver num país de aparências é isso…Quando o rótulo é mais importante que o conteúdo,ou quando o” factóide ” ou os fatos mal engendrados pesam mais que a realidade, é campo fértil para o surgimento desses mágicos da hermenêutica e suas prestidigitações cavilosas…
Parece ser da tradição do Direito Brasileiro a exacerbada valorização do “nomen juris” a despeito de sua essência.
Noutro giro, que tal um artigo sobre o tema: investigação do MP?
abraços
MEU TEMA DE MONOGRAFIA É JUSTAMENTE SOBRE A INCONSTITUCIONALIDADE DO INSTITUTO ENTREGA, PELO JEITO O MEU TEMA VAI DAR PANO PARA MANGA