Vedação de pena restritiva de direito na nova lei de drogas

7 de janeiro de 2008

Como é sabido, a nova lei de drogas (Lei n° 11.343/2006), diferentemente da lei anterior (Lei n° 6.368/76), proibiu, expressa e terminantemente, quanto ao crime de tráfico e equiparados, a substituição da pena de prisão por pena restritiva de direito, além de considerá-los inafiançáveis e insusceptíveis de sursis, graça, indulto etc. 1(art. 44).

Quanto ao crime de tráfico (art. 33), a vedação seria desnecessária, em virtude da severidade da pena mínima cominada, não fosse a possibilidade de aplicação de pena inferior a cinco de reclusão, admitida na forma do §4° do referido artigo. Quanto aos crimes dos arts. 34 a 37 (exceção feita ao financiamento do tráfico previsto no art. 36, que comina pena mínima de oito anos de reclusão) equiparados ao tráfico, cuja pena mínima é, respectivamente, de três e dois anos de reclusão, não haveria em princípio obstáculo à substituição, se a pena aplicada não excedesse a quatro anos (CP, art. 44, I).

Presume-se que semelhante vedação pretendeu realmente inviabilizar jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que se consolidava no sentido de admitir, na vigência da lei revogada, a possibilidade de substituição da pena de prisão por pena restritiva de direito.

Que o legislador ordinário podia estabelecer novos parâmetros de pena, bem como vedar a substituição da pena de prisão por pena restritiva de direito, parece fora de dúvida. Com efeito, se podia o mais (criminalizar/descriminalizar, penalizar/despenalizar), podia o menos: proibir a admissão de pena não privativa da liberdade para os crimes mais gravemente punidos, em especial, o tráfico, por se tratar de crime assemelhado a hediondo, se bem que os argumentos utilizados pelo STF para declarar a inconstitucionalidade da não progressão em crimes hediondos parecem valer também aqui.

Mas isso não impede que o juiz, senhor que é da individualização da pena, de dar à nova lei interpretação conforme a Constituição, tomando como parâmetro a legislação infraconstitucional inclusive, especialmente o Código Penal.

Com efeito, não parece razoável que sentenciados por crimes de tráfico e similar não tenham direito à substituição, enquanto outros condenados por delitos tão ou mais graves (v.g., peculato, concussão, corrupção passiva, crime contra o sistema financeiro) possam fazer jus ao benefício. Note-se, aliás, que o condenado por este e outros crimes (de dano, e não de simples perigo, como é o tráfico), a exemplo do homicídio culposo, tem em tese direito à substituição, apesar de se tratar de crime contra a vida, e, pois, mais grave, desde que a pena não seja superior a quatro anos, diversamente do condenado por tráfico à mesma pena ou a pena inferior a quatro anos, que não faria jus ao benefício. Ora, é evidente que semelhante tratamento ofende o princípio da isonomia, sobretudo porque o critério de aferição da maior gravidade do crime (desvalor de ação e resultado) e, portanto, da condenação, é essencialmente formal: objetivamente, a pena cominada ou imposta; subjetivamente, a existência ou não de antecedentes.

Logo, não faz sentido, por exemplo, que duas pessoas, igualmente primárias e sem antecedentes, que cometam crime sem violência ou grave ameaça à pessoa, sofram a mesma pena (digamos, dois anos de prisão), mas tenham tratamento sensivelmente desigual: uma fará jus à substituição e a outra não, só por ser tráfico de droga o seu crime e, pois, existir vedação legal no particular. Note-se que o crime do beneficiado pela substituição poderá ser eventualmente hediondo inclusive (v.g., falsificação de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais), a demonstrar, ainda mais contundentemente, a violação ao sistema de valores e princípios constitucionais.

Portanto, não parece justo ou razoável, nem conforme os princípios de proporcionalidade, individualização da pena e isonomia, que o juiz, ao condenar o réu por crime de tráfico a pena não superior a quatro anos, não possa substituí-la em virtude da só vedação legal, mesmo porque a missão do juiz já não é mais, como no velho paradigma positivista, sujeição à letra da lei, qualquer que seja o seu significado, mas sujeição à lei enquanto válida, isto é, coerente com a Constituição (Ferrajoli). O juiz não é a boca que pronuncia as palavras da lei, como pretendeu Montesquieu.

Parece-nos enfim que, apesar da vedação legal do art. 44 e 33, §4°, final, ao juiz é dado substituir, fundamentadamente, a pena de prisão por pena restritiva de direito, desde que as circunstâncias judiciais sejam favoráveis ao réu e a substituição seja socialmente recomendável, nos termos da lei e do Código Penal (art. 44), por ser a legislação penal fundamental.

 

Paulo Queiroz é professor do UniCEUB (Centro Universitário de Brasília) e Procurador Regional da República.

 

 

1Sídio Rosa de Mesquita Júnior entende, no entanto, que a lei não proíbe a substituição, mas a conversão, a cargo do juiz da execução. Textualmente: “a Lei n° 11.343/2006 não proíbe a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direito. Por isso, ela só se volta ao juiz da Execução, não atingindo o Juiz criminal. Este, no momento da sentença, não encontrará obstáculo legal ao impor a norma de conteúdo material, isso em face do aspecto garantista da norma criminal”. Comentários à lei antidrogas. S. Paulo: Atlas, 2007, p. 79. Parece evidente, porém, que o legislador utilizou a expressão conversão no sentido de substituição.

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15 Comentários

  1. Um grande defensor das garantias individuais, um mestre cuja característica principal é a humildade. Este site é um presente a todos os operadores do Direito.

    Parabéns Paulo!!

  2. Com a entrada em vigor da Lei 11.464/07, e, a revogação do artigo 44 da lei 11.343/006, a vedação quanto à conversão da pena teve fim, sendo totalmente cabível. Parabéns pelo artigo e pelo site, demostrando uma visão excelênte sobre as garantias individuais. ótimo.

  3. Olá, então quer dizer q se uma pessoa condenada à 3 anos e 50 dias multa pelo crime de trafico de entorpecentes, em regime integralmente fechado, pode estar pleiteando a substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos? Ainda mais se conta com os requisitos subjetivos (primariedade e não registra antecedentes) favoráveis à sua pessoa? Aguardo resposta Segue meu email para resposta. Obrigada e parabéns pelo artigo.

  4. Importante observar que o artigo 44, da Lei 11343/06 não proibiu expressamente os benefícios legais (sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos) na hipótese do artigo 33, parágrafo 4, tendo cautelosamente excluído da relação. Logo, se o juiz aplicar o benefício da redução de 2/3 pode, inclusive, conceder o Sursis, pois o parágrafo quarto do artigo 33 apenas a conversão em restritiva de direitos, não impedindo a palicação do art. 77 do CP.

  5. Independentemente de concordar ou não com a posição do Dr. Paulo, o seu texto é um primor, na qualidade, no conteúdo e na forma clara e elegante de escrever. parabéns. Escreva sobre outros temas importantes e polêmicos. Aguardo.

  6. HC 97.256 do STF julgou inconstitucional a parte do artigo 44 da lei 11.343/96 que veda a substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direito , e o Senado confirmou com a Resolução 05/2012. Independente da posição do professor, belas palavras, parabéns !

  7. Tenho um filho que esta cumprindo regime semiaberto pelo crime de trafico em um processo em fase de recurso, agora em outro processo também por tráfico de drogas, ele foi condenado a 2 anos e 6 meses em regime fechado, posso requerer que ele responda a este crime em regime aberto para não perder os benefícios atuais?, o que devo fazer, a primeira condenação não o atrapalharia neste pedido?

  8. apelação criminal n” 00411062420048260576, acordao registrado n”20150000199599… onde centenas de pessoas foram condenadas em varios artigos, eu sou uma delas fui condenada a 4 anos na associação para o trafico no forum de origem..entrando com a apelação em sao paulo foi julgado e confirmado a sentença…isso pq ja faz quaze 7 anos que saiu a condenação….agora saiu o acordão e os dignissimos relatores e juizes não deram direitos de ficarmos LIBERDADE, SAO 140 PESSOAS ENVOLVIDA EM UM SÓ PROCESSO..Gostaria de sua opinião se minha pena de 4 anos pode ser convertida em beneficio e eu possa continuar em liberdade..esse processo ta com 11 anos que vem martilizando minha vida, faz 10 anos que estou em liberdade e agora estou com muito medo de sair um mandato de PRISÃO..POR FAVOR ME AJUDE, TENHO 45 ANOS SOU PORTADORA DO VIRÚS HIV, TENHO 2 NETOS PEQUENINOS QUE MORAM COMIGO POIS TENHO A GUARDA DEFINITIVA DELES E NÃO TEM NINGUÉM QUE POSSA CUIDA_LOS….ME AJUDE ESTOU DESESPERADA….

    IVANETE MALDONADO LEITE…..

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