“Quero sim e quero não”, canta Zé Ramalho: dolo não é (somente e qualquer) intenção.

7 de maio de 2018

José Osterno Campos de Araújo

Procurador Regional da República – 1ª Região

I – Primeiros Acordes

A Canção: “Pelo vinho e pelo pão”. O Compositor e cantor: Zé Ramalho, o Zé Ramalho da Paraíba. O trecho que aqui se destaca: “Beijos de doce veneno, quero sim e quero não”, para, então, se chegar aos dois questionamentos que pautam este texto.

O primeiro: pode alguém, em sã consciência, querer e, ao mesmo tempo, não querer algo que realiza?

O segundo: é possível, sem maltrato à dogmática jurídico-penal, afirmar-se o tipo penal subjetivo, sem que – antes e induvidosamente – se dê pela presença do correlato tipo penal objetivo? Dito de outro modo, pode-se falar em dolo em fato objetivamente atípico?

O cancioneiro de língua inglesa, também com fuga ao senso lógico, entoa: You don’t want me, but you want me1, como a querer dar razão a Bilac – que ouvia estrelas – pálido de espanto.

II – Dolo não é (QUALQUER) intenção

Dois Procuradores Regionais da República – na sala de um deles – conversam sobre direito penal.

Entra o garçom. Dois cafés e duas águas, em uma bandeja.

Sorvidos café e água (na ordem inversa), o primeiro Procurador pergunta ao garçom: “Fulano, se eu – querendo a morte de alguém – atirasse na cabeça desse alguém, que estivesse deitado, aí em frente, nesse sofá, e depois se descobrisse que, ao receber o tiro por mim disparado, esse alguém já estivesse morto, há 30 minutos, de causas naturais (sem que eu soubesse ou pudesse saber), pergunto a você: ‘ao atirar, tive a intenção de matar esse alguém?‘”. Ao que, sem demora, responde convicto o garçom: “Teve, sim”, fazendo com que o primeiro procurador se volte para o segundo e diga: “Viu!”.

Resposta correta, nos termos da pergunta.

Houvesse, no entanto, o primeiro procurador perguntado ao garçom acerca de haver atuado com dolo de homicídio, ao disparar o tiro contra quem já morrera, embora não soubesse dessa prévia morte, outra seria a resposta – não acessível à ciência do cordato garçom, jejuno em letras jurídicas.

Passa-se, então (a ordem dos fatores não altera o produto), ao segundo questionamento (item I, acima), formulando-se três perguntas complementares: 1ª) pode-se falar que alguém, ao merendar, tem dolo de comer um bolo?; 2ª) Ou que alguém teve dolo de ir à praia e, por isso, foi?; 3ª) Ou, ainda, que no momento em que lê este texto o leitor tem dolo de fazê-lo?

A resposta negativa se impõe.

Isto porque, desdobrado o tipo penal em tipo penal objetivo e tipo penal subjetivo, a negação do primeiro (nas situações acima, os três fatos – ‘comer bolo‘; ‘ir à praia‘ e ‘ler um texto‘ – são objetivamente atípicos) é conducente a que se tenha por prejudicada a verificação do segundo, visto se afigurar o dolo como conceito eminentemente jurídico, e não psicológico, consistindo, prima facie, no querer2 o agente, ao atuar, a realização de fato que preenche tipo penal objetivo, com ciência de todos os elementos desse mesmo tipo penal objetivo, o qual efetivamente logra realizar, seja perfeita (consumação), seja imperfeitamente (tentativa).

Não se pode, pois, matar dolosamente alguém, sem que: primeiro, se saiba que se pratica a conduta contra alguém, com possibilidade de morrer e, por isso, vivo; e, segundo, que a conduta seja direcionada – juridicamente – à realização da morte desse alguém (atuação para a morte, em que coincidem ‘querer psicológico‘ e ‘querer jurídico‘, ou atuação apesar da morte, em que ausente o ‘querer psicológico‘, mas presente – e é o que importa para juridicamente se afirmar o dolo – ‘o querer jurídico3).

No pertinente, as palavras de Sebastian Soler e de Muñoz Conde.

Soler ensina: “Sea que se haga consistir el dolo en la representación del resultado, sea en la voluntad de producirlo, debe tenerse bien presente que dolo es una expresión técnica jurídica, que no se identifica ni con la voluntad ni con representación, ni con intención, en el valor natural o psicológico de estos términos. Es manifiesta la incorrección cometida al decir: he comprado dolosamente este libro, porque lo adquirí con la intención de leerlo. Intención, voluntad, representación, son conceptos psicológicos. El dolo supone siempre eso y algo más: la relación a un orden normativo, frente al cual el hecho ha sido con anterioridad lógica calificado. Así, en el ejemplo citado, basta suponer que la circulación de esse libro sea prohibida y delictiva, para que la incorrección del término desaparezca; en tal caso, la acción de adquirir el libro es una acción dolosa”4 (destaques por acréscimo).

Muñoz Conde exemplifica: “Así, por ejemplo, el tipo subjetivo del homicidio doloso requiere el conocimiento (y, como después se verá, la voluntad) de que se realizan los elementos objetivos del tipo de homicidio: que se mata, que la ación realizada es adecuada para producir la muerte de outra persona, que la víctima es una persona y no un animal, etc5 (negritos acrescidos); isto porque o tipo penal objetivo do crime de homicídio exige, necessariamente, a presença do elemento alguém (elemento descritivo ou normativo?6), e – permitido o reforço pleonástico – alguém, até então (antes do tiro, exempli gratia), vivo.

Incorreu, pois, o legislador em equívoco ao utilizar as expressões: ‘Não se pune a tentativa‘; ‘Se o suicídio se consuma‘ e ‘Se da tentativa de suicídio‘; a primeira, no caput do artigo 17, e, as duas últimas, no preceito secundário do tipo penal do artigo 122, ambos do Código Penal, já que referidas expressões detêm significado técnico-jurídico, não se podendo cogitar de tentativa, e muito menos de consumação, em fato objetivamente atípico. Em verdade, crime impossível e suicídio não apresentam tipicidade penal.

A fuga à técnica jurídico-penal poderia ter sido evitada, caso o legislador houvesse dito: 1º) ‘Não se pune a intenção criminosa‘ em substituição a ‘Não se pune a tentativa’, no caput do artigo 17, CP; e 2º) ‘Se o suicida morre‘, em lugar de ‘Se o suicídio se consuma’; e ‘Se do suicídio frustrado‘, em vez de ‘Se da tentativa de suicídio’, no preceito secundário do artigo 122, CP.

Miguel Reale Jr, acerca da incompatibilidade entre tentativa e crime impossível, afirma: “Enquanto no crime tentado a consumação deixa de ocorrer pela interferência de causa alheia à vontade do agente, no crime impossível a consumação jamais ocorrerá, e, assim sendo, a ação não se configura como tentativa do crime, que se pretendia cometer, por ausência de tipicidade. (…). No crime impossível, são os próprios meios de que se serve o agente ou o objeto material sobre o qual faz recair sua ação que tornam impossível o crime. Não chega a haver tentativa de crime, pois esta pressupõe a utilização de meios idôneos e obviamente também, a existência de objeto material”7.

Se, no crime impossível, não há tipicidade penal objetiva, como se falar em dolo de matar um morto?

No molde da teoria da imputação objetiva, na hipótese de se atirar, com intenção de matar, em um morto, cuja morte se desconhecesse, haveria a criação ou incremento de risco ao bem jurídico protegido, a saber, a vida humana? Por óbvio, não. Em verdade, sequer existiria vida, como bem jurídico-penal a se tutelar. Negada, pois, a imputação objetiva, não há que se falar, por prejudicada, em correlata imputação subjetiva, fase subsequente à afirmação da imputação objetiva do resultado – como concretização do risco produzido – à conduta praticada.

Ainda, imagine-se que alguém desenvolva velocidade excessiva em seu veículo, em via urbana, para não perder a hora na faculdade. Havendo inobservado o dever de cuidado, não se lhe pode imputar haver atuado com culpa (elemento normativo/subjetivo do tipo penal), à míngua da causação, por exemplo, de lesão corporal (em) ou morte (de) alguém. Houve imprudência, sim, mas não a realização de tipo penal objetivo culposo, circunstância que, ao fim, obsta a verificação do elemento normativo/subjetivo do tipo penal: culpa.

Se não há culpa, sem tipo penal objetivo, por que, no mesmo contexto, haveria dolo?

No pertinente, Américo Taipa de Carvalho ensina que: “Para haver crime doloso é necessário que a componente ou dimensão objectiva do facto típico seja abrangida pelo dolo do respectivo agente. Daqui a designação de dolo do facto, dolo do tipo ou dolo da factualidade típica para significar esta exigência do conhecimento das características ou elementos do facto descrito no tipo legal, e a vontade de realizar este facto”8 (destaques por acréscimo).

Enrique Bacigalupo, após afirmar que no crime doloso, “coinciden lo ocorrido (la realización del tipo objetivo) com lo querido (la realización del tipo subjetivo)”, acrescenta “La realización del tipo objetivo es dolosa cuando el autor ha sabido de ella y la ha querido. El dolo, por tanto, es el conocimiento y la voluntad de la realización del tipo”9 (destaques por acréscimo).

Por sua vez, Juan J. Bustos Ramírez e Hernán Hormazábal Malarée afiançam: “No obstante, a efectos analíticos y metodológicos hay que distinguir un aspecto objetivo y outro subjetivo em el tipo legal. Metodológicamente, en el examen de la situación social concreta cuya tipicidade es sometida a comprobación, es necessário estabelecer primero la concurrencia de aquellos elementos que configuran el aspecto objetivo y después la de aquellos que configuran el subjetivo, pues el conocimiento está referido precisamente a dicho aspecto”10 (destaques por acréscimo).

A esta altura, existe lastro para resposta ao segundo questionamento deste texto: Não. Não se pode falar, sem assassinar a lógica11 jurídico-penal, em dolo em fato objetivamente atípico12.

Com efeito, dolo não é (QUALQUER) intenção, mas, em uma de suas formas (classificações), é intenção qualificada pela realização – perfeita (consumação) ou imperfeita (tentativa) – de fato juridicamente querido (na intenção ou dolo direto de primeiro grau, se confundem vontade jurídica – a única necessária e suficiente para o dolo – e vontade psicológica), que preenche um tipo penal objetivo.

III – Dolo não é (SOMENTE) intenção

Fosse o dolo um verbo, seria daqueles verbos anômalos, cuja conjugação só se daria no passado: eu dolei; tu dolaste; ele dolou; etc.

Acertado, pois, o emprego na redação do artigo 18, inciso I, do Código Penal dos verbos querer e assumir no tempo passado: “Art. 18 – Diz-se o crime: I – doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo”.

Isto porque dolo é imputação que somente se faz, após a prática do fato e desde que o fato praticado preencha a moldura de um tipo penal objetivo.

Consistindo em imputação pós-fato, o dolo detém ainda a característica da referibilidade, já que deve, necessariamente, consistir em imputação referida ao momento da prática do fato objetivamente típico.

Assim, praticado o fato – e constatada sua tipicidade penal objetiva – somente então se poderá avaliar se sua realização ocorreu dolosa ou culposamente, ou, ainda, se ocorreu causação, a um só tempo, sem dolo e sem culpa13.

É, então, a ocorrência de fato objetivamente típico pressuposto inafastável da imputação dolosa, imputação que, sobre se realizar pós-fato, é conducente a se dar razão a Roxin14: “El dolo no se forma em la cabeza del autor, sino em la cabeza del juez”, por isso, “no constituye um dato (Factum) psicológico, sino um juicio de valor judicial”.

Apresentado o dolo como vontade – normativa e consciente – realizadora de (que realizou, perfeita ou imperfeitamente) fato objetivamente típico, destacam-se seus elementos: vontade e consciência.

A vontade é manifesta na própria decisão de agir. Com efeito, a decisão humana de atuar – para o crime ou apesar do crime – não é autômata, necessitando de escolha, de opção, enfim, de decisão do agente, consciente das circunstâncias e consequências daquilo que faz. Assim, a representação das circunstâncias e consequências do agir atuaria – uma vez realizada a ação15 – como mecanismo de estímulo ou de não inibição da atuação encetada.

No ponto, Diego-Manuel Luzón Peña, após afirmar que “voluntad no sólo la hay em el dolo directo de 1er. Grado: el propósito o intención”, esclarece: “si de verdad no quiere realizar el hecho típico, tiene que desistir o renunciar a su actuación, afirmação que, embora direcionada por Luzón Peña ao dolo direto de 2º grau, presta-se ainda a evidenciar a vontade como decisão de agir também no dolo eventual, em que, no dizer do doutrinador hispânico, há “un mínimo de voluntad en forma de aceptación o consentimiento ante la posibilidad, aquí no segura, de producción del hecho típico”16 (destaques por acréscimo).

Havendo o agente representado o fato, em sua completa dimensão de circunstâncias e consequências, dois caminhos se lhe apresentam: agir ou não agir. Agindo, quer – normativa ou juridicamente – o fato, e, somente se não agir, evidenciará sua decisão (querer jurídico) contrária ao representado fato objetivamente típico.

Chegada, pois, a hora da resposta ao primeiro questionamento-base deste texto: alguém, em sã consciência, somente poderia dizer ‘quero e não quero‘ a algo que realiza, se manifestado o ‘sim‘ como querer jurídico e o ‘não‘ ao querer psicológico.

Pense-se na seguinte hipótese: Jonas, apaixonado, quer muito casar com Marta. No entanto, não quer a mãe de Marta, Mara, como sogra. Duas opções se lhe apresentam: a primeira – casar com Marta, manifestando seu querer psicológico à noiva, e aceitar, embora lamentando, Mara como sogra, manifestando, então, seu querer jurídico à mãe da noiva; e a segunda – não casar com Marta, perdendo então o grande amor de sua vida, por dar relevo a seu não querer psicológico de ter Mara como sogra.

Na hipótese, que se aproxima do chamado dolo direto de 2º grau (fosse objetivamente típico o fato de ter Mara como sogra), noiva e sogra, por intimamente ligadas, vêm em um só pacote, que, representado como um todo, pode ser, ou não – normativa ou juridicamente – querido.

Em arremate: o “quero sim e quero não” – à margem da arte, que, como a necessidade, não obedece a leis – somente é possível se presentes, em relação a algo que se realiza, o querer normativo ou jurídico que diz ‘quero sim’ e o (não) querer psicológico que emenda ‘quero não’.

IV – Acorde Final

Ao fim, uma noção (sem foro de definitividade) de dolo: diz-se dolosa a atuação consciente que realizou, perfeita (consumação) ou imperfeitamente (tentativa), um fato normativa ou juridicamente querido, que preenche um tipo penal objetivo.

É o que – até aqui – penso, sem, no entanto, esquecer a advertência de Karl Jaspers17: “É fácil adotar uma opinião e mantê-la para poupar-se o trabalho de continuar pensando”.

1Em tradução livre: Você não me quer, mas você me quer; trecho da canção Let Me Go, Lover!, dos compositores Benjamin Weisman, Fred Wise, Jenny Lou Carson e Kay Twomey.

2Querer jurídico, frise-se, e não meramente psicológico.

3Também chamado de ‘querer normativo’.

4Soler, Sebastian, Derecho penal argentino.2a. Reimp. Buenos Aires: Tipografica Editora Argentina, 1953, Tomo II, p. 99.

5Conde, Francisco Muñoz/Bitencourt, Cezar Roberto. Teoria geral do delito. 2. ed., São Paulo: Saraiva, 2004, p. 172.

6Com Paulo Queiroz, passamos a entender ultrapassada, pelo evolver social, a diferenciação entre elemento descritivo e normativo. Assim, feto anencéfalo e mulher, atualmente, são conceitos meramente descritivos? Afinal, os elementos objetivos do tipo não serão todos normativos, a exigir valoração jurídica ou cultural?

7Reale Jr., Miguel. Teoria do delito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998, p. 210-211.

8Carvalho, Américo Taipa de. Direito Penal. Parte Geral. 2a ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 320.

9Bacigalupo, Enrique. Manual de derecho penal. Parte general. Bogotá: Editorial Temis, 1989, p. 103.

10Ramírez, Juan J. Bustos; Malarée, Hermán Hormazábal. Nuevo sistema penal. Madrid: Editorial Trotta, S.A., 2002, p. 78.

11Trecho da canção “Assaltaram A Gramática”, dos compositores Lulu Santos, Wally Salomão e Gabriel O Pensador.

12Ao viajar à Europa, tenho (melhor dizendo, tive) dolo de fazê-lo?! Patente absurdo!

13Alguém que conduz seu veículo, com todas as cautelas, e, de repente, um suicida se joga sob as rodas do carro conduzido por esse alguém. Na hipótese, haverá causação de morte, sem dolo e sem culpa.

14Apud Gomes, Enéias Xavier. Dolo sem vontade psicológica: perspectivas de aplicação no Brasil. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2017, p. 114.

15Caso não realizada a ação, por decisão do agente, a representação das circunstâncias e consequências do fato teria atuado como mecanismo inibidor da ação.

16Luzón Peña, Diego-Manuel. Curso de derecho penal. Parte general. Vol. I. Madrid: Editorial Universitas, S.A., 1996, p. 412.

17Jaspers, Karl. A questão da culpa. São Paulo: Todavia, 2018, p. 9-10.

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