Quais os limites do indulto?

22 de março de 2018

1)Introdução

Se fizermos uma interpretação literal da Constituição, teremos de concluir que não há limite algum ao indulto, já que os poucos artigos que tratam do poder de perdoar fazem referência, não ao indulto propriamente dito (em sentido estrito), mas à graça e à anistia (CF, art. 5°, XLIII1), ao vedá-las para os crimes de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, terrorismo e os definidos como crimes hediondos. Em verdade, o único artigo da Constituição sobre o tema é justamente aquele que dá ao Presidente da República esse poder (CF, art. 84, XII). Explicitamente, nada há além disso.

Assim, o Presidente da República, atuando como uma espécie de ditador ou monarca em pleno Estado Democrático de Direito, poderia, em tese, conceder indulto em qualquer fase da investigação, do processo ou da execução, e para qualquer delito, hediondo ou não, simples ou qualificado, grave ou insignificante. E incondicionalmente e sem prazos, podendo, por exemplo, conceder em seu próprio favor, e em favor de seus parentes e aliados políticos ou fixar condições puramente simbólicas (v.g., cumprimento de um dia de pena, qualquer que fosse a pena imposta). Poderia também admiti-lo com ou sem execução de parte da pena, bem como concedê-lo gratuitamente, sem exigir requisito algum.

Se assim interpretássemos o instituto, o Presidente da República disporia de um poder absoluto absolutamente incompatível com um sistema democrático de direito. Afinal, bastaria, como chefe do Poder Executivo, apelar ao decreto de indulto para abolir o sistema penal criado pelo legislativo e interpretado pelo judiciário. Em suma, disporia do poder de anular, no todo ou em parte, decisões judiciais fundadas em lei editada pelo parlamento, sempre que o quisesse.

Consequentemente, a Constituição deve ser interpretada sistematicamente, não literalmente. O juiz não é a boca que pronuncia as palavras da lei (Montesquieu), mas quem, ao interpretá-la, atribui-lhe sentidos, que são sempre novos. São, pois, os juízes e tribunais que dizem o que as leis dizem (a Constituição, inclusive); a interpretação é o ser do direito, e o ser do direito é um devir, que, com ou sem alteração da redação dos textos legais, está em permanente transformação.

Logo, há – ou há de haver -, sim, limites (formais e materiais) ao poder de indultar. Mas quais são esses limites?

Naturalmente, o mais razoável seria que o poder legislativo editasse lei dispondo sobre o tema, estabelecendo as condições e os limites do indulto, eventualmente submetendo-o referendum do Congresso Nacional. Mas essa lei não existe, ou não existe ainda, embora haja quem defenda sua impossibilidade, ao argumento de que se a CF não estabelece limites, tampouco o legislador ordinário poderia fazê-lo2.

Justo por isso, cabe ao judiciário, especialmente ao Supremo Tribunal Federal, exercer o controle de constitucionalidade do decreto presidencial, afastando o que lhe parecer incompatível com a Constituição, seja para ampliar (v.g., admitindo a incidência sobre tráfico privilegiado), seja para restringir-lhe o alcance (v.g., não admitir para a hipótese anterior).

Inicialmente, temos que a vedação constitucional prevista para a anistia e a graça (espécie de indulto individual) vale também para o indulto (coletivo), já que são institutos análogos e se prestam ao mesmo fim: perdoar, total ou parcialmente, autores de crimes em circunstâncias especiais, principalmente por razões humanitárias. Esses limites são dados pelo artigo 5°, XLIII, da CF: “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”.

Com efeito, se o poder legislativo não pode anistiar tais delitos, tampouco poderia fazê-lo o poder executivo, por meio de simples decreto.

2)Pontos principais do decreto 9.246/2017

Os pontos principais do decreto podem ser assim resumidos: 1)estabelece limite mínimo de cumprimento de pena para crimes não violentos (1/5 e 1/3), conforme se trate de condenado primário e reincidente; mas não prevê limite máximo, permitindo-o, portanto, para qualquer condenação independentemente de ser leve, grave ou gravíssima; 2)prevê limites mínimos e máximos para crimes violentos, não sendo admitido o indulto para condenações superiores a 8 anos de prisão; 3)admite-o para o tráfico privilegiado (art. 33, §4°, da Lei de Drogas), prevendo critérios distintos para homens (¼) da pena e mulheres (1/6 da pena); 4)dá tratamento mais brando (1/6 e ¼, conforme se trate de primário ou reincidente) para crimes patrimoniais sem violência, se houver reparação do dano até 25/12/2017; para esses delitos não há previsão de limite máximo; 5)indulta presos torturados durante o cumprimento da pena. A tortura o indulta. Aqui não há fixação de critério algum, exceto que o delito de tortura tenha sido reconhecido em duplo grau de jurisdição; 6)estabelece rol taxativo de crimes não indultáveis (art. 3°), hediondos e outros; 7)prevê indulto natalino especial para mulheres presas (art. 5°); 8)indulta medidas de segurança aplicável a inimputável ou semi-imputável (art. 6°); 9)indulta penas restritivas de direito, penas de multa e réus sob suspensão condicional do processo (art. 8° e 10).

Aparentemente é o decreto mais amplo já expedido.

3)Resumo da decisão proferida pelo Ministro Luís Roberto Barroso do STF

Como se sabe, o Ministro Luís Roberto Barroso, ratificando medida cautelar proferida pela Ministra Cármen Lúcia (Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 5.874 do DF), suspendeu dispositivos do Decreto n° 9.246/2017, por inconstitucionalidade, alegando, em síntese: 1)que a competência presidencial para indultar é atípica e excepcional; 2)que é vedado ao Presidente da República contrariar a política criminal estabelecida pelo legislador ordinário, sob pena de violação da separação de poderes e usurpação da competência legislativa do Congresso Nacional; 3)que os decretos anteriores exigiam o cumprimento ao menos 1/3 da pena privativa de liberdade; 4)que a concessão de indulto para condenado que tenha cumprido somente 1/5 da pena, entre outros benefícios, viola o subprincípio da proibição de proteção deficiente, como dimensão do princípio da proporcionalidade; 5)que uma política criminal excessivamente branda/leniente é incompatível com os fins do direito penal (prevenção geral etc.); 6)que o decreto viola a moralidade administrativa e implica desvio de finalidade (CF, art. 37). No caso, o decreto, apesar de seu caráter geral, visaria, ao menos em parte, a beneficiar condenados por graves crimes de corrupção e outros, recentemente investigados, processados ou condenados; teria, portanto, cunho pessoal; 7)o indulto não teria, relativamente a tais delitos, repercussão relevante sobre a superlotação carcerária (uma das justificadas dadas pelo decreto); 8)ausência de legitimidade democrática do decreto; 9)que o decreto, ao reforçar a cultura de leniência e impunidade, contaria o interesse social de castigar duramente a criminalidade do poder; o decreto estaria, portanto, “em manifesta falta de sintonia com o sentimento social” e “daria um passe livre para corruptos em geral”; 10)o decreto contraria o parecer do CNPCP (Conselho Nacional de Política Criminal), que propunha a exclusão de diversos delitos (peculato, corrupção etc.); 11)o indulto (de 80% da pena, isto é, 4/5) é aplicável à condenações por crimes não violentos independentemente da pena fixada, implicando proteção deficiente.

A decisão aponta ainda diversas inconsistências do decreto (artigo 8°, III e 11, II), como a previsão de indulto para: 1)penas não privativas da liberdade (restritivas de direito e multa); 2)suspensão condicional do processo; 3)condenação pendente de recurso da acusação.

O Ministro suspendeu, então, o indulto para os seguintes delitos: 1)peculato, concussão, corrupção passiva e ativa, tráfico de influência, os praticados contra o sistema financeiro nacional, os previstos na Lei de Licitações, os crimes de lavagem de dinheiro e ocultação de bens, os previstos na Lei de Organizações Criminosas e a associação criminosa, nos termos propostos pelo CNPCP; 2)substituir a exigência de 1/5 por 1/3 de cumprimento de pena, relativamente aos delitos praticados sem violência ou grave ameaça à pessoa (artigo 1, I); 3)nesse caso, o indulto só é aplicável às condenações iguais ou inferiores a 8 anos de prisão; 4)afastar o indulto da pena de multa (artigo 10 do decreto); 4)suspender o indulto de pena restritiva de direito e de suspensão condicional do processo (art. 8°, I e III); 5)recusar o indulto em relação às condenações pendentes de recurso da acusação (art. 11, II).

4)Conclusão

Como se sabe, há diversos precedentes do STF admitindo o controle de constitucionalidade com base na vedação de proteção deficiente, principal fundamento da decisão tomada pelo Ministro Barroso. No âmbito penal, a decisão talvez mais conhecida (RE 418.376-5/MS, especialmente o voto-vista proferido pelo Ministro Gilmar Mendes) é a que afastou o art. 107, VII e VIII do CP3, depois revogado pela Lei n° 11.106/2005, que dizia que o casamento do autor do crime de estupro (e de outros crimes contra os costumes, expressão da época) com a vítima ou mesmo com um terceiro implicava a extinção da punibilidade. Embora controvertido, o princípio é geralmente aceito pela doutrina e jurisprudência.

No particular, não há, portanto, novidade: o STF já há algum tempo admite o controle de constitucionalidade com fundamento no princípio da proporcionalidade, para afastar excessos para mais ou para menos.

Atualmente, a questão fundamental não reside, por conseguinte, em saber se o STF pode ou não exercer o controle de constitucionalidade nesses casos de alegada violação à vedação de proteção deficiente, mas em estabelecer os limites desse controle.

Tratarei disso e de outros temas noutro artigo.

1Art. 5°, XLIII – a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura , o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem.

2Nesse sentido, Alberto Silva Franco (Crimes hediondos. São Paulo: RT, 2017, p.163): “Com efeito, a regra do art. XLIII do art. 5° da Constituição Federal, que veda a incidência de causa extintivas de punibilidade em relação a determinados crimes, constitui uma restrição constitucional. O exercício do poder de restrição não comporta alargamento em lei intermediadora. Além disso, se a Constituição Federal inclui a concessão de indulto e a comutação de penas entre as atribuições do Presidente da República (art. 84, XII, da CF) e se ela própria não excepcionou, em situação alguma, o exercício desse competência, não caberia, evidentemente, ao legislador ordinário, limitá-lo”. E Ana Lúcia Tavares Ferreira. Indulto e sistema penal: limites, finalidades e propostas. São Paulo: Editora Liber Ars, 2017.

3O artigo 107, VII e VIII, do CP, previa a extinção da punibilidade:

VII – pelo casamento do agente com a vítima, nos crimes contra os costumes, definidos nos Capítulos I, II e III do Título VI da Parte Especial deste Código;

VIII- pelo casamento da vítima com terceiro, nos crimes referidos no inciso anterior, se cometidos sem violência real ou grave ameaça e desde que a ofendida não requeira o prosseguimento do inquérito ou da ação penal no prazo de 60 (sessenta) dias a contar da celebração.

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