Por que adotar a teoria da acessoriedade extremada da participação

3 de outubro de 2008

Paulo de Souza Queiroz e Aldeleine Melhor Barbosa

A participação, isto é, cooperação dolosa em crime alheio, pressupõe, logicamente, a autoria, tratando-se, por conseguinte, de um conceito não autônomo, mas acessório, que, como tal, depende do conceito principal: o conceito de autor. Exatamente por isso, o ajuste, a determinação ou instigação e o auxílio não são puníveis, se o crime não chega, pelo menos, a ser tentado (CP, art. 31).

Mas esse caráter acessório da participação comporta graus(1) e é ordinariamente assim classificado: a) acessoriedade mínima: a punição do partícipe depende da simples conduta típica do autor); b) acessoriedade limitada: a punição do partícipe exige conduta típica e antijurídica do autor; c) acessoriedade máxima ou extremada: a punição do partícipe exige, além da conduta típica e antijurídica, a culpabilidade do autor; d) hiperacessoriedade: a punição do partícipe depende também da punibilidade do autor.

Pois bem, apesar de a teoria da acessoriedade limitada (item b) ser absolutamente majoritária na doutrina(2), pensamos que a razão está com a teoria da acessoriedade extremada, motivo pelo qual sempre que o autor for absolvido por inculpabilidade (v.g., erro de proibição, coação moral irresistível), tal deverá beneficiar o partícipe, em virtude do caráter acessório da participação.

Em primeiro lugar, porque a inculpabilidade do autor implica o reconhecimento do caráter não criminoso do fato principal; logo, não faria sentido que se tivesse por criminosa a participação, acessória que é. É que a participação em fato não criminoso, criminoso logicamente não é. Em segundo lugar, porque a teoria da acessoriedade limitada acaba por autonomizar a participação relativamente à autoria, negando-lhe a pressuposta acessoriedade. Em terceiro lugar, porque não parece compatível com o princípio da proporcionalidade que, embora absolvido o autor, se possa castigar o partícipe. Em quarto lugar, porque nem sempre é fácil estabelecer uma diferenciação clara entre excludentes de ilicitude e de culpabilidade (v.g., coação moral irresistível e legítima defesa de terceiro), e, pois, saber se o partícipe é ou não jurídico-penalmente responsável. Além disso, a distinção entre uma e outra não preexiste à interpretação, mas é dela resultado.

Daí se dizer que não se pode aplicar a teoria da acessoriedade limitada sem maiores reflexões(3). É que situações há em que a não inculpabilidade do autor haverá de se comunicar ao partícipe necessariamente. É o caso do pai que realiza a conduta típica sob séria ameaça de morte de seu filho (coação moral irresistível), hipótese em que o partícipe que o auxilia não poderá ser responsabilizado, isoladamente, pelo cometimento do crime.

O mesmo pode ser dito quando o partícipe auxilia o autor a praticar um fato amparado pela inexigibilidade de conduta diversa. É o caso do dono da empresa que, já em processo falimentar e com vários títulos protestados, deixa de repassar à Previdência Social as contribuições descontadas de seus empregados. Com efeito, quem ajuda o agente que se encontra em tal situação não pode responder autonomamente pelo crime do art. 168-A do Código Penal, pois tampouco lhe é exigível conduta diversa. Também não faz sentido que o autor seja absolvido por erro de proibição inevitável e o partícipe condenado (v.g., o caçador e quem o auxilia; aquele absolvido, este condenado).

Quanto à objeção de que o partícipe seria beneficiado por circunstância pessoal que não lhe diz respeito, tal é perfeitamente aplicável às excludentes de tipicidade (v.g., erro de tipo) e ilicitude (v.g., legítima defesa), e, pois, não procede.

Finalmente, tudo o que acaba de ser dito não se aplica à hipótese de inimputabilidade por alienação mental ou menoridade, porque, diversamente dos demais casos de exclusão de culpabilidade, aqui o autor (inimputável) sofrerá uma sanção adequada à sua situação: medida de segurança ou medida sócio-educativa, conforme o caso. Exatamente por isso, o partícipe, tendo tomado parte numa ação típica, ilícita e culpável, logo, punível, será castigado na forma da lei. Aqui, sim, a circunstância de caráter pessoal do autor não lhe aproveita. E mesmo que pudesse aproveitá-lo, não seria para deixá-lo impune, mas para lhe impor medida de segurança ou medida sócio-educativa, sanções legalmente incompatíveis com a sua condição de imputável.

Por último, não é correto dizer que o Código Penal adotou a teoria da acessoriedade limitada por conta do disposto nos arts. 29, § 2º, 30, 31 e 62, todos do CP(4). Sim, porque, embora tais artigos afirmem a acessoriedade da participação, nada dizem sobre o seu grau, que é assim uma questão doutrinária(5). Mais: dizem respeito essencialmente à punibilidade e à individualização judicial da pena, e só acidentalmente à teoria do crime.

Notas

(1) MAYER, Marx Ernest apud BATISTA, Nilo. Concurso de Agentes. 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2004, p. 164.

(2) Nesse sentido: WELZEL, Hans. Derecho Penal Ale­man. Santiago: Editorial Juridica de Chile, 1993, p. 135; JESCHECK, Hans-Heirich. Tratado de Derecho Penal: Parte General. 4ª ed., Granada: Editorial Comares, 1993, pp. 596-597. No Brasil: DE JESUS, Damásio. Direito Penal: Parte Geral. 27ª ed., vol I, São Paulo: Saraiva, 2003, p. 416; BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral. 11ª ed., São Paulo: Saraiva, 2007, pp. 423/424; BATISTA, Nilo. Concurso de Agentes. 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2004, pp. 164-165; GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Geral. Vol I, 8ª ed., Niterói: Impetus, 2007, pp. 453/454; ZAFFARONI, Eugenio Raúl et al. Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. 4ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. pp. 684-686. Contrariamente, adotando a teoria da acessoriedade limitada: Bruno, Aníbal apud BATISTA, Nilo. Concurso de Agentes. 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2004, p. 165; BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Direito Penal: Parte Geral. Vol I, São Paulo: Saraiva, 2003, pp. 416-417; RAMOS, Beatriz Vargas. Do Concurso de Pessoas. Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p. 42. CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Vol I, 9ª ed., São Paulo: Saraiva, 2005, pp. 342-343.

(3) GALVÃO, Fernando. Direito Penal: Parte Geral. Rio de Janeiro: Impetus, 2004, pp. 471/472.

(4) Nilo Batista. Concurso de Agentes, cit., p. 165 e GALVÃO, Fernando. Direito Penal, cit, p. 472.

(5) Flávio Augusto Monteiro de Barros. Direito Penal, cit., p. 417.

Paulo de Souza Queiroz
Doutor em Direito (PUC/SP), procurador regional da República e professor do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB)

Aldeleine Melhor Barbosa
Analista processual do Ministério Público da União e especialista em Direito Público

 

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4 Comentários

  1. A coação moral irresistível, ordinariamente, é relacionada como caso de autoria mediata. Ou seja, consideram que ao autor da coação deve ser imputada a conduta do autor do fato previsto como crime. Exemplo: João ameaça matar José, de dois anos, caso Pedro, seu pai, não ateie fogo no galpão da loja de Marcos, desafeto do primeiro. A doutrina majoritária, a mesma que relaciona tal exemplo como caso de autoria mediata (e não como participação), revela-se desatenta à contradição que encerra a concomitante defesa da teoria da acessoriedade limitada.

  2. Não dou muita importância as teorias, noentanto no caso in comento, sou da opinião, que autoria e participação, caminham pela mesma esteira.

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