Leis penais em branco e princípio da reserva legal

18 de maio de 2005

Como é sabido, as assim chamadas leis penais em branco – expressão que procede de Karl Binding – são normas penais incriminadoras que, embora cominem a sanção penal respectiva, seu preceito, porém, porque incompleto, depende de complementação (expressa ou tácita) por outra norma, geralmente de nível inferior (decreto, regulamento, portaria etc.), de modo a precisar-lhe o significado e conteúdo exatos; leis penais em branco são, enfim, tipos penais estruturalmente incompletos1 . Exemplo disso são os casos de tráfico ilícito de entorpecentes (Lei 6.368/76, art. 12) e a omissão de notificação de doença (CP, art. 269), que remetem à norma inferior a complementação do seu significado, determinando quais são as drogas ilícitas que produzem dependência física ou psíquica e quais são as doenças de notificação compulsória.

Pois bem, questão das mais relevantes e pouco debatida diz respeito à compatibilidade deste tipo de norma com o princípio da reserva legal.

A doutrina, embora eventualmente exija o atendimento de certos requisitos, tem-nas como constitucionais e compatíveis com o aludido princípio. Assim, por exemplo, Luzón Peña, para quem, o recurso à técnica de remissão há de ser absolutamente excepcional por resultar estritamente necessário, imprescindível, e não meramente conveniente, para completar a descrição típica da conduta2 . De modo semelhante, Cerezo Mir aduz que esta técnica de remissão só é aceitável quando necessária por razões de técnica legislativa (por resultar em outro caso a regulação legal excessivamente casuística), e pelo caráter extraordinariamente cambiante da matéria objeto da regulação, que exigiria uma revisão mui freqüente das ações proibidas ou ordenadas, motivo pelo qual na lei penal em branco já deve conter a descrição do núcleo essencial da ação proibida ou ordenada3 . Finalmente, Jescheck considera que quando a norma que há de completar a lei penal em branco tiver caráter delegado, o legislador deve prever a cominação legal, bem como descrever com tal precisão o conteúdo, a finalidade e o alcance da autorização que o cidadão possa extrair já na lei mesma os pressupostos da punibilidade e a classe de pena, pois, do contrário, não se respeitaria o princípio da determinação legal do delito e da pena4 . Entre nós, manifestam-se pela constitucionalidade Luiz Régis Prado5 e Guilherme de Souza Nucci, entre outros6 . E no sentido da inconstitucionalidade Rogério Greco7 e André Copetti8 .

Sobre o assunto, o Tribunal Constitucional espanhol (sentença 127/1990, de 5 de julho) já teve ocasião de se pronunciar pela constitucionalidade das leis penais em branco, exigindo, porém, que “o reenvio normativo seja expresso e esteja justificado em razão do bem jurídico protegido pela norma penal; que a lei, além de prever a pena, contenha o núcleo essencial da proibição e seja satisfeita a exigência de certeza, ou…se dê a suficiente concreção, para que a conduta considerada criminosa fique suficientemente precisa com o complemento indispensável da norma à que a lei penal faz remissão e resulte, desta forma, salvaguardada a função de garantia do tipo com possibilidade de conhecimento da atuação penalmente cominada”. De acordo com este entendimento, portanto, são necessários os seguintes requisitos: a) necessidade estrita da remissão; b) que a norma, embora incompleta, já preveja a sanção específica; c) que o preceito contenha o “núcleo essencial da proibição”.

Pessoalmente, tenho que as leis penais em branco que remetem o complemento a norma inferior são inconstitucionais, por implicarem clara violação do princípio da reserva legal e da divisão de poderes.

Com efeito. Tomemos como referência o tráfico ilícito de entorpecentes. Inicialmente, não há dúvida de que o art. 12 da Lei 6.368/76 atende aos requisitos exigidos pelo tribunal espanhol, uma vez que, ao descrever o núcleo essencial da conduta típica, criminaliza nada menos que 18 (dezoito) verbos e comina a pena cabível – 3 a 15 anos de reclusão. Além disso, pode-se dizer que o bem jurídico protegido – a saúde pública – justifica plenamente a remissão. Estariam satisfeitas, assim, as exigências daquela corte constitucional.

No entanto, quando a lei permite que o “núcleo essencial da proibição” seja completado por simples ato administrativo, é o Poder Executivo quem dirá, em última análise, o que constitui, ou não, tráfico ilícito de entorpecentes, afinal é ele que, um tanto arbitrariamente, discriminará as substâncias entorpecentes capazes de determinar dependência física ou psíquica e que, por isso, devem constar do rol do núcleo essencial da proibição.

Caberia indagar, então: quem, no Brasil, define, realmente, o que é “tráfico ilícito de entorpecentes”? Obviamente que não é o Poder Legislativo, mas o Poder Executivo, mais exatamente o Ministério da Saúde, que se utiliza, para tanto, de simples portaria, decretando, dentro do vastíssimo universo das drogas, as que devem ser consideradas ilícitas, proscrevendo-as. Enfim, quanto ao assunto drogas ilícitas, quem legisla sobre matéria penal é, em última instância, o próprio Ministério da Saúde, o Poder Executivo, mesmo porque a lei penal em branco era até então, simplesmente, uma “alma errante em busca de um corpo” (Binding), e, portanto, carente de auto-aplicação, ante a manifesta imprecisão de seus termos e conseqüente necessidade de complementação. Até então, enfim, a lei penal era uma espécie de cheque em branco emitido em favor do Executivo.

Semelhante ato viola, por conseguinte, a um tempo, ainda que oblíqua e sutilmente, o princípio da reserva legal, por tolerar que simples portaria emanada do Poder Executivo possa dispor sobre matéria penal, criminalizando uma dada conduta, bem como o princípio da divisão de poderes, já que é aquele poder, e não o legislativo, quem acaba legislando em um tal caso.

Não quer isso dizer, porém, que as leis penais em branco sejam inconstitucionais; inconstitucional é apenas a remissão à norma inferior que não ostente o status de lei em sentido formal, bem assim o preceito de norma que não contenha o núcleo essencial da proibição ou que sequer preveja a pena. O primeiro obstáculo poderá ser superado com a edição de lei pelo Congresso Nacional declaratória das drogas ilícitas, ainda que meramente homologatória de proposta (portaria) do Ministério da Saúde; o segundo, com a redação de tipos penais com a máxima precisão de seus elementos constitutivos, conforme o princípio da taxatividade. Em isso não ocorrendo, estaremos tolerando mais uma violação ao princípio da reserva legal, entre tantas violações que o silêncio ou conveniência vai perpetuando.

Finalmente, quanto à circunstância de a matéria objeto da remissão ser, ordinariamente, cambiante, o que a justificaria, temos que a mutabilidade e a incerteza que a cerca justifica, em verdade, o contrário: que não deveria ser objeto de criminalização ou que somente o fosse depois de profunda discussão sobre o assunto, motivo pelo qual, também por esta razão, sobre ela deveria manifestar-se, previamente, o Poder Legislativo, seja para aprovar, seja para rejeitar.


Notas de rodapé convertidas1. Utilizo aqui a expressão em sentido estrito (Binding), e não em sentido amplo (Mezger), pois, do contrário, confundir-se-ão leis penais em branco com leis penais incompletas. Conceito ainda mais restrito dá-nos Rodriguez Mourullo, para quem, as leis penais em branco são sempre leis que remetem, expressa ou tacitamente, a determinação concreta do preceito a uma autoridade distinta de nível inferior, Derecho Penal, p. 87/89, Ed. Civitas, Madrid, 1978.2. Derecho Penal, p. 146 e ss., Editorial Universitas, Madrid, 1996.

3. Curso de Derecho Penal Espanhol, Introduccion, p. 156, Tecnos, Madrid, 1997.

4. Tratado, p. 98, Ed. Comares, Granada, 1993.

5. Curso de Direito Penal Brasileiro, RT, S. Paulo, 2002.

6. Código Penal Comentado, RT, S. Paulo, 2002.

7. Curso de Direito Penal, Impetus, Rio, 2003.

8. Direito Penal e Estado Democrático de Direito, Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre, 2001.

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4 Comentários

  1. TRATANDO-SE DE NORMA PENAL EM BRANCO, PODEMOS ENTENDER QUE O PROBLEMA DA FALTA DE SEGURANÇA JURÍDICA NO PERÍODO QUE KARL BINDING VIVEU, CONTRIBUIU PARA QUE KELSEN, NA AUSTRIA PUDESSE APERFEIÇOAR TAL ASSERTIVA.

    ATT…

    AQUINO.

  2. Caríssimo Aquino,
    cumpre não confundir ambas as concepções. Em primeiro lugar, como tive a oportunidade de me manifestar fartamente em meu “Leis Penais em branco e o Direito Penal do Risco”, nunca houve um “diálogo” entre Kelsen e Binding, mas sim a tentativa do primeiro de refutar a teoria do segundo. Porém, Kelsen comete vários equívocos que tornam sua própria concepção absolutamente insubsistente, a começar pelo fato de considerar a sanção como imprescindível à norma (absurdo, uma vez que, assim, ambas deveriam ser aplicadas concomitantemente). Kelsen sequer se pronunciou sobre as chamadas leis em branco (e isso também já foi esclarecido por Armin Kaufman em Lebendiges und Totes Bindings Normentheorie). Abraço

  3. No meu ponto de vista, normas penais em branco (em sentido estrito/própria ou heterogênea) complementadas por disposições regulamentares não são inconstitucionais, pois não violam o princípio da reserva legal, corolário do princípio da legalidade. Isto porque há limites jurisprudenciais e doutrinários à complementação da norma penal em branco, de modo que o complemento não poderá ter por objeto o núcleo essencial da proibição ou da imposição, abarcando apenas os elementos normativos do tipo. Desta feita, com a conduta suficientemente delineada, seguida do preceito secundário da norma penal incriminadora, estará cumprida a garantia constitucional (CF/88, art. 5º, inc. XXXIX) e legal (CP, art. 1º). Ademais, não vislumbro ofensa ao princípio da separação constitucional de poderes, porquanto ao Poder Executivo é outorgado poder regulamentar, por meio do qual autoriza-se a Administração Pública editar normas complementares para o fiel cumprimento da lei.

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