Criminalidade do poder, polícia e impunidade

18 de fevereiro de 2008

Suponha que você tenha cometido um delito grave, mas, estranhamente, detenha o poder de designar e/ou supervisionar a autoridade que irá investigá-lo, de modo que a você, o delinqüente, pertence, em última análise, o comando final da sua própria investigação. É evidente que isso é um total absurdo, uma farsa.

Mas é exatamente isso que ocorre entre nós no âmbito das investigações policiais destinadas a apurar a criminalidade do poder. Com efeito, compete a um servidor hierarquicamente inferior (Delegado de Polícia ou Delegado Federal) investigar crimes praticados por seus superiores hierárquicos (Presidentes, Ministros, Governadores, Secretários de Estado) ou autoridades de que dependem, direta ou indiretamente, como Deputados Federais/Estaduais e Prefeitos municipais. Ou seja: as chamadas autoridades de alto escalão acabam por investigar a si mesmos por meio da designação e/ou monitoramento dos seus investigadores. Dito de outro modo: no modelo policial brasileiro, os investigados/criminosos detêm o controle político das investigações, apesar de não as presidirem formalmente.

Ora, é evidente que, em que pesem a competência e boa fé da grande maioria, não cabe esperar de um Delegado de Polícia, que pretende fazer carreira, obter promoções, remoções etc., e também parecer bem aos olhos de seus superiores, que investigue de forma isenta infrações cometidas por aqueles de que dependem hierarquicamente (salvo em casos excepcionais e insignificantes), até porque os eventuais implicados poderão afastá-los a todo tempo. Cuida-se, portanto, de uma investigação comprometida desde a sua concepção, isto é, estruturalmente viciada, podendo pretextar a perseguição de adversários políticos inclusive. E manter uma estrutura policial que dependa hierárquica e diretamente do poder executivo, além de implicar uma clara subversão da lógica das investigações, constitui uma manobra para acobertar possíveis crimes de certas autoridades e assim lhes assegurar a impunidade. Quanto ao inquérito do “mensalão”, exceção à regra, caberia lembrar que, além da extraordinária repercussão na imprensa, nele interveio o Ministério Público desde o primeiro momento, o que nem sempre ocorre.

Não é de surpreender, por isso, a descoberta na Bahia de mais de 300 (trezentos) procedimentos e inquéritos policiais envolvendo cerca de 30% dos 417 municípios baianos, que dizem respeito a prefeitos, vice-prefeitos e ex-prefeitos (Cf. Correio Braziliense, 17 de fevereiro de 2008), sobre homicídio inclusive, os quais estavam “esquecidos” numa sala da Secretaria de Segurança Pública desde 1988, todos fadados ao reconhecimento inevitável da prescrição e, pois, à impunidade dos criminosos.

O pior é que o ocorrido na Bahia é o que se passa em todo o Brasil ordinariamente, se bem que a estratégia do “esquecimento” costuma assumir forma mais sutil, pois mais freqüentemente os inquéritos policiais, quando efetivamente instaurados, se arrastam anos a fio por meio de pedidos sucessivos de dilação de prazo; e quando chegam a ser concluídos, não são realizadas a tempo e modo as diligências indispensáveis e colhidas as provas necessárias à penalização dos responsáveis. A isso se soma ainda a costumeira morosidade dos tribunais de contas.

Por essas e outras é que ainda hoje a polícia judiciária brasileira se limita a apurar, quase que exclusivamente, crimes patrimoniais e similares (estelionato, furto, roubo), típica criminalidade dos grupos socialmente excluídos, e, pois, mais economicamente vulneráveis, deixando impune a criminalidade do poder, apesar de bem mais danosa, a exigir o quanto antes a sua reestruturação, quer autonomizando-a relativamente ao poder executivo, quer (mais adequadamente) fazendo integrar instituição independente a que está vinculada finalisticamente: o Ministério Público.

É pena que não tenhamos, no entanto, um Congresso Nacional à altura de tão grandes desafios, que, no mais das vezes, se perde na discussão de questões de somenos importância, e que ora parece funcionar à semelhança de uma Câmara de Vereadores de uma cidade atrasada do interior, como uma espécie de anexo do executivo, ora à semelhança de uma delegacia de polícia, por meio de CPI’s pouco produtivas, e que cada vez mais perde espaço para o executivo e judiciário.

 

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2 Comentários

  1. Caro Paulo,
    No Brasil, em última análise, quem diz o que seja crime é o Delegado de Polícia. Digo isso por que entendo que a seleção se dá não só em razão do aspecto hierárquico, mas também em função de interesses pessoais. Em relação à morosidade dos inquéritos, é preciso notar que o Ministério Público tem significativa parcela de culpa, uma vez que a cada pedido de dilação do prazo o MP é ouvido, quando tem oportunidade – no exercício do controle externo – de requisitar as diligências necessárias e até propor a punição pela desídia, caso exista.

  2. É muito difícil investigar os chefes, detentores do poder, em cima da corda bamba.
    Às vezes, até acontece a investigação. Só que elas só servem para obter favores dos governantes.
    Agências policiais talvez sofreriam menos interferência de políticos.
    Nem se fale das polícias militares: estas sofrem interferências de todos os ramos da sociedade!

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