Colaboração premiada

20 de setembro de 2017

1)Introdução

A atual colaboração premiada sempre existiu entre nós, ainda que com os mais diversos nomes (confissão, confissão delatória, chamamento do corréu, delação, cooperação processual etc.). Com efeito, já o Livro V das Ordenações Filipinas previa o instituto no título sobre o crime de Lesa Majestade (Título VI, item 12) e também no Título CXVI (como se perdoará aos malfeitores que derem outros à prisão). Mais recentemente foi introduzida no ordenamento jurídico pela Lei de Crimes Hediondos (Lei n° 8.072/90, art. 8°, parágrafo único) como causa de redução de pena1.

Mas a Lei n° 12.850/2013, na linha das Convenções de Palermo (art. 26) e Mérida (art. 37), é a que tratou do tema de forma mais ampla e sistematizada, porque dispôs sobre requisitos, prêmios, procedimento, direitos do colaborador etc., de modo que, junto com a Lei n° 9.807/1999 (trata dos programas de proteção a vítimas e testemunhas ameaçadas), é uma espécie de código ou estatuto da colaboração.

Apesar disso, a nova lei, cujo artigo 26 revogou expressamente (apenas) a Lei n° 9.034/95, que tratava das organizações criminosas, manteve incólume a legislação preexistente, razão pela qual há um certo caos legislativo no particular, já que diversos diplomas legais cuidam do assunto2.

Como não houve revogação expressa ou tácita, as disposições legais que já previam o instituto permanecem válidas (princípio da especialidade). Logo, a Lei n° 12.850/2013 incidirá apenas subsidiariamente sobre as demais, isto é, sempre que a lei especial for omissa (v.g., procedimento para a celebração do acordo).

É certo ainda que a Lei n° 13.260/2016, que dispõe sobre o terrorismo, prevê (art. 16), expressamente, a incidência da Lei das Organizações Criminosas e dos meios de obtenção de prova nela previstos (colaboração premiada, ação controlada, infiltração etc.).

Temos também que é possível a chamada combinação de leis – que é, em verdade, um caso de retroatividade parcial da lei3, por força do princípio da retroatividade da lei mais favorável. Assim, o juiz poderá, em tese, no caso do art. 159, §4°4, do CP, conceder, não a redução máxima da pena de 2/3, mas o perdão judicial, para o réu que facilitou a libertação do sequestrado, com base nas Leis n° 12.850/2013 e 9.807/1999. O mesmo poderia ocorrer, mutatis mutandis, para o tráfico de drogas, relativamente ao réu colaborador (Lei n° 11.343/2006, art. 415).

Embora destinada às organizações criminosas definidas no art. 1° da Lei (associação de quatro ou mais pessoas para a prática de delitos com penas máximas superiores a quatro anos), a colaboração premiada é perfeitamente aplicável às infrações conexas cometidas pela associação (crimes ou contravenções), independentemente da pena cominada. Com efeito, se a restringirmos à criminalidade mais grave, violaríamos o princípio da proporcionalidade, ao dar tratamento legal mais brando aos delitos mais graves, em prejuízo dos menos graves, razão pela qual o instituto há de também incidir para todos os delitos e contravenções conexas praticadas pela organização (v.g., contravenção do jogo do bicho).

É importante notar que a colaboração prevista na Lei n° 9.807/99 (dispõe sobre a proteção de testemunhas e vítimas ameaçadas) é aplicável a qualquer infração penal (crime ou contravenção), dolosa ou culposa, praticada em coautoria ou por associação criminosa. Justo por isso, a jurisprudência admite a aplicação do instituto para outros delitos cometidos em coautoria ou participação, não necessariamente praticados por organização criminosa.

Como é óbvio, não há um direito à colaboração, ficando a cargo do Ministério Público a decisão sobre a conveniência e a oportunidade da realização do acordo. Evidentemente, o MP não terá interesse algum em firmar acordo de colaboração se os fatos estiverem suficientemente esclarecidos ou a contribuição pretendida pelo colaborador for de todo irrelevante.

Se, apesar disso, o investigado ou denunciado quiser colaborar e for rejeitada a colaboração, poderá se valer, em tese, da confissão, apta a atenuar a pena (CP, art. 65, III, b e d6), ou arrependimento posterior (CP, art. 167), que reduz a pena até 2/3.

Por último, o instituto, com a configuração jurídica atual, pode incidir em qualquer fase da investigação, do processo ou da execução penal.

2)Conceito

A colaboração premiada é um meio de obtenção de prova (ou técnica especial de investigação) por cujo meio o Estado concede determinados benefícios legais ao autor de infração penal disposto a cooperar com a investigação e o processo criminal, identificando coautores ou partícipes de crime, ajudando na localização de vítimas, na recuperação de ativos etc.

É uma confissão, embora com outro nome e com um tratamento penal especialíssimo; a colaboração premiada é, em suma, uma confissão premiada, razão pela qual só o coautor ou partícipe de crime poderá se valer desse instituto. Faltando-lhe essa condição, poderá colaborar com a justiça apenas como testemunha ou informante.

Embora pressuponha a confissão de crimes, não constitui bis in idem a eventual cumulação dos benefícios da colaboração com a atenuante da confissão espontânea (CP, art. 65, III, d), conforme jurisprudência.

A colaboração não é incompatível com outros meios de obtenção de prova, podendo coexistir, por exemplo, com a ação controlada ou com a infiltração, desde que se realizem na forma da lei.

3)Colaboração e moral

Há quem considere a colaboração premiada imoral; logo, incompatível com o ordenamento jurídico, seja porque premiaria um traidor, seja porque estimularia uma conduta eticamente reprovável8.

O equívoco é manifesto.

Com efeito, a colaboração premiada não é outra coisa senão uma confissão9, embora com outro nome e com uma disciplina jurídico-penal própria, especial. E a confissão é tão legítima quanto qualquer outro meio de prova. Afinal, o investigado ou acusado, no exercício da ampla defesa, tem o direito de confessar – ou não confessar – o delito, com todas as suas circunstâncias, mencionando coautores e participes do crime, inclusive. O que não seria possível, moral ou juridicamente, é coagir o réu a confessar um crime ou proibi-lo de livremente confessá-lo.

Aliás, tão importante é confissão nos dias atuais que o processo penal europeu continental, de modo similar ao direito norte-americano (plea bargaining, guilty plea etc.), parece caminhar no sentido de admitir ou expandir acordos sobre a sentença no processo penal10. Entre nós, a Resolução n° 181/2017 do CNMP prevê, inclusive (art. 18), o acordo de não-persecução penal para os crimes praticados sem violência ou grave ameaça à pessoa, cujo pressuposto é a confissão (formal e detalhada).

Além disso, não existe um sistema moral universal/objetivo que valha para além da história e dos indivíduos concretamente considerados. Como disse Nietzsche, não existem fenômenos morais, mas apenas uma interpretação moral dos fenômenos (Além do bem e do mal, aforismo 108). Assim, a distinção entre moral e direito – são palavras de Kelsen – não pode ser encontrada naquilo que as duas ordens sociais prescrevem ou proíbem, mas no como elas prescrevem ou proíbem uma determinada conduta humana.11A distinção entre ordem jurídica e moral tem a ver, portanto, não com o conteúdo, mas com a forma.

Justo por isso, se, da perspectiva dos criminosos, há (ou não) uma traição por parte do delator, o mesmo já não ocorre do ponto de vista do Estado, que vê na sua iniciativa uma legítima colaboração no sentido de prevenir e reprimir crimes. De mais a mais, a “ética do crime” é um problema de e entre criminosos, não um problema do Estado.

Mesmo em relação à “ética do crime”, o delator não é, ou não é forçosamente, um traidor, sobretudo quando estiver sofrendo ameaças e o “dever de lealdade e silêncio” (omertà) lhe for prejudicial. Por vezes, delatar comparsas é necessário e exige coragem.

Não bastasse isso, de acordo com a moral dominante, o indivíduo tem o dever de dizer a verdade, tanto que a lei, que o obriga a isso (art. 4°, §14, da Lei 12.850/2013), criminaliza a colaboração caluniosa (art. 19 da Lei).

Ademais, direito e moral não se confundem, nem o direito é necessariamente moral, afinal nem tudo que é lícito é honesto/moral (Paulo – Digesto). Exatamente por isso, o ordenamento jurídico é pleno de institutos questionáveis do ponto de vista moral que nem por isso são ilegítimos, a exemplo da pena de morte, do aborto legal, do agente infiltrado, da tributação de atividades ilícitas (pecunia non olet) etc.. Em suma, a eventual imoralidade de um instituto jurídico não lhe afeta a juridicidade.

Finalmente, testemunhas e informantes também delatam, e nem por isso as criticamos moralmente.

Por último, as finalidades legais do instituto (prevenir novos crimes, salvar vítimas, identificar coautores, recuperar o produto do crime etc.) são justas, morais e legítimas, a justificá-la plenamente. Como se vê, é possível, inclusive, colaboração sem delação de comparsas de crime (só recuperar ativos etc.). A atual colaboração, portanto, não exige, inevitavelmente, a delação. Por que seria imoral, por exemplo, especialmente no nosso contexto judaíco-cristão, desistir ou arrepender-se de tomar parte num grave delito – v.g., extorsão mediante sequestro – e (com ou sem delação de comparsas) ajudar na libertação da vítima do cativeiro?

Mais: premiar – ou não – a colaboração, e como fazê-lo, é uma opção político-criminal legítima.

Em suma, dizer-se que o delator é um traidor, ou que o é necessariamente, é um clichê, um simples preconceito moral, que não compromete, absolutamente, a legitimidade da colaboração.

Como é óbvio, advogar a moralidade e a juridicidade da colaboração premiada não significa ignorar ou legitimar possíveis abusos na sua aplicação, problema diverso e passível de ocorrer com qualquer instituto jurídico.

4)Legitimidade para celebração do acordo, procedimento etc.

Como o acordo de colaboração repercute, diretamente, sobre o exercício da ação penal, só o Ministério Público, titular da ação penal, poderá firmá-lo, não o delegado de polícia, que não é parte no processo penal, embora presida o inquérito policial e, pois, exerce um papel fundamental na sua condução.

Naturalmente que, nessa condição, o delegado de polícia poderá, durante o inquérito policial, iniciar as tratativas do acordo e submetê-lo à apreciação do MP, mas não firmá-lo como parte desse negócio jurídico, por faltar-lhe atribuição constitucional para tanto. Ademais, a autoridade policial pode, perfeitamente, ao lançar relatório conclusivo das investigações, representar pela concessão de algum (ou alguns) dos prêmios da lei (art. 4°, §2°, da Lei), com ou sem anuência do MP.

É bem verdade que o art. 4°, §6°, da Lei12, dá (explicitamente) poderes ao delegado para, durante o inquérito policial, celebrar o acordo de colaboração; mas tal dispositivo deve ser interpretado conforme a Constituição, de modo a evitar que a Polícia Judiciária pratique ato de atribuição exclusiva do MP (CF, art. 129, I).

Mas, se admitida a realização do ato por parte do Delegado de Polícia, o MP necessariamente terá de participar e se manifestar favoravelmente à celebração do acordo, sob pena de nulidade.

O assistente não tem legitimidade para firmar acordo de colaboração (CPP, art. 27113). Em tese, o querelante, na ação penal privada subsidiária, poderia propor e celebrar o acordo, mas uma tal hipótese dificilmente ocorrerá.

Firmado o acordo, o respectivo termo, acompanhado das declarações do colaborador e de cópia da investigação, será remetido ao juiz para homologação, o qual deverá verificar sua regularidade, legalidade e voluntariedade, podendo ouvir, em caráter sigiloso, o colaborador, na presença de seu defensor. E recusará homologação à proposta que não atender aos requisitos legais, ou adequá-la ao caso concreto. Assim, por exemplo, não homologará acordo sem participação do MP ou sem a presença do advogado do colaborador, ou, ainda, determinará a eliminação de cláusula manifestamente abusiva ou que preveja renúncia do direito de recorrer etc.

O juiz, a quem competente o controle da legalidade da colaboração, não participará das negociações realizadas entre as partes para a formalização do acordo de colaboração, tampouco emitirá (nesse momento) juízo de valor sobre o mérito do acordo (conveniência, oportunidade etc.).

O acordo de colaboração é um negócio jurídico bilateral14, livremente pactuado, razão pela qual não pode, sob nenhum pretexto, ser imposto ao investigado, denunciado ou condenado, podendo o colaborar, inclusive, retratar-se, tornando-o sem efeito.

O advogado é indispensável à realização do acordo, o qual assistirá o colaborador e defenderá seus interesses. Em todos os atos de negociação, confirmação e execução da colaboração, o colaborador deverá estar assistido por defensor (art. 4°, §15).

Como é óbvio, não é possível prisão preventiva ou qualquer medida de coação para forçar a colaboração. Apesar disso, nada impede que o réu preso provisoriamente colabore, podendo fazê-lo durante o cumprimento da pena, inclusive. O que de fato importa não é saber se o colaborador está preso ou solto, mas a voluntariedade e a regularidade da colaboração.

A formalização do acordo de colaboração é essencial para a garantia dos direitos e deveres das partes contratantes, bem como para estabelecer os seus exatos limites, que, como é evidente, não atinge delitos não mencionados, explícita ou implicitamente, no contrato.

Apesar disso, temos que, ainda que não haja acordo formal entre o MP e o colaborador (ou tenha havido rescisão), se ficar demonstrada a eficaz colaboração e forem atendidos os requisitos legais, o juiz poderá conceder, mesmo de ofício, os prêmios da lei, o perdão judicial, inclusive, nos termos do art. 13 da Lei n° 9.807/199915. Para fins de concessão dos benefícios da lei, o acordo de colaboração não é, portanto, uma condição essencial, mas acidental16.

5)Prêmios legais, eficácia da colaboração etc.

Os prêmios legais, que variarão conforme a relevância, prontidão e eficácia da colaboração, são seis: 1) perdão judicial; 2) redução da pena de prisão em até 2/3 (dois terços); 3)redução da pena até a metade, se a colaboração for posterior à sentença condenatória; 4)substituição da prisão por pena restritiva de direitos; 5)progressão de regime; 6)acordo de imunidade (não oferecimento de denúncia).

São, em princípio, alternativos, não cumulativos; mas é possível, em tese, a cumulação, podendo, por exemplo, o réu colaborador fazer jus à redução da pena junto com a progressão de regime, já que, se o juiz pode o mais (v.g., perdoar), há de poder o menos (cumulá-los).

Além disso, o elenco dos prêmios legais não é exaustivo, podendo ser admitidos outros, se e quando compatíveis com o ordenamento jurídico. Assim, é admissível acordo sobre a prisão preventiva já decretada, no sentido de revogá-la, substituí-la por medida cautelar diversa ou de apenas transferir o colaborador para presídio mais próximo da família. Aliás, um dos direitos do colaborador é a possibilidade de cumprimento da pena em estabelecimento penal diverso dos demais corréus ou condenados.

Com exceção do acordo de imunidade, que é prejudicial ao processo (não há oferecimento de denúncia), a concessão dos benefícios da lei se dará (ou não) na sentença final, segundo o devido processo legal (denúncia, processo etc.). É que, ainda que as partes tenham acordado o perdão judicial, competirá ao juiz concedê-lo (ou não) na sentença, quando apreciará o atendimento dos requisitos legais.

O acordo de imunidade, que é uma exceção ao princípio da obrigatoriedade da ação penal, constitui o máximo benefício previsto na lei, já que é prejudicial ao processo penal (não há oferecimento de denúncia) e implica a extinção da punibilidade. Justo por isso, somente há de ser concedido em casos especialíssimos e excepcionalíssimos.

Também por isso, a lei exige, neste caso, dois requisitos adicionais, desnecessários para os demais prêmios, a saber: a)que o colaborador não seja o líder da organização criminosa; b)seja o primeiro a colaborar.

Mas não parece faz sentido impedir que o líder da organização tenha direito à imunidade de que trata o art. 4°, §4°, I17, da Lei, visto que é a pessoa que, justamente por ser o líder ou um dos líderes, pode prestar a mais valiosa contribuição para o desmantelamento da associação criminosa.

Ademais, o primeiro a prestar colaboração, ao contrário do que presume a lei (art. 4°, §4°, II), não é forçosamente aquele quem tem mais a contribuir para o sucesso das investigações; podendo ser apenas o mais ansioso.

Por fim, o acordo de imunidade produz, essencialmente, o mesmo efeito do perdão judicial, benefício que a lei não veda ao líder da organização, nem se exige que seja o primeiro a colaborar.

Com relação à redução da pena até a metade e admissão da progressão de regime após a sentença (art. 4°, §5°18), não há violação à coisa julgada19, seja por se tratar de norma penal benéfica ao condenado, podendo, pois, retroagir em seu favor, seja porque o acordo após a sentença não ofende a expectativa de segurança jurídica inerente ao instituto. Fosse a coisa julgada uma garantia absoluta, não seria possível a abolitio criminis ou a novatio legis in mellius, que é justamente o que ocorre no caso agora comentado.

Para que o colaborador faça jus aos benefícios previstos no acordo, a colaboração deverá ser eficaz e produzir um ou mais dos seguintes resultados (os requisitos não são cumulativos, mas alternativos): 1)a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas; 2) a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa; 3)a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa; 4)a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa; 5) a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada.

O prazo para oferecimento de denúncia ou o processo, relativos ao colaborador, poderá ser suspenso por até 6 (seis) meses, prorrogáveis por igual período, até que sejam cumpridas as medidas de colaboração, suspendendo-se o respectivo prazo prescricional.

Em todos os casos, é indispensável a homologação judicial do acordo, sob pena de nulidade.

6)Critérios para a concessão, denegação e individualização dos benefícios

A celebração do acordo e a concessão dos prêmios legais levarão em conta a personalidade do colaborador, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do fato criminoso e a eficácia da colaboração.

O que está em causa, essencialmente, é o princípio da proporcionalidade, compreensivo da necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito.

A valoração dessas circunstâncias caberá à Polícia Judiciária (durante o inquérito), ao Ministério Público e ao Poder Judiciário.

Tais circunstâncias servem para ao menos três finalidades sucessivas: 1)acolher ou rejeitar a proposta de realização do acordo; 2)uma vez admitido o acordo, definir os possíveis benefícios legais do colaborador (causa de redução de pena, perdão etc.); 3)conceder e individualizar ou denegar, na sentença final, os benefícios do colaborador.

Dito isso, é de ver que a referência à personalidade é de todo despropositada, seja porque é própria de um direito penal do autor, que pune o agente não pelo que faz, mas pelo que é, seja porque o juiz ou o MP não têm como valorá-la, por faltar-lhes conhecimentos psiquiátricos etc., para tanto, seja porque não faz sentido considerá-la relativamente a criminosos envolvidos com os mais graves delitos, não raro, delinquentes habituais, reincidentes ou multirreincidentes. Justo por isso, a lei não refere – nem faria sentido se o fizesse – a reincidência ou a primariedade como requisitos da colaboração.

Já a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do fato criminoso hão de servir, não propriamente para denegar os benefícios, mas para individualizá-los, de modo a evitar, por exemplo, que policiais-colaboradores envolvidos com “grupo de extermínio” possam fazer jus ao perdão judicial ou à imunidade.

No contexto da colaboração relativa à criminalidade organizada, que se dedica à prática regular e permanente de delitos graves ou gravíssimos (homicídio, extorsão, tráfico de pessoas e de drogas, corrupção etc.), o que mais importa não é, por conseguinte, tanto a personalidade do colaborador ou o tipo de delito praticado etc., mas a relevância, prontidão e eficácia da colaboração no sentido de fazer cessar, total ou parcialmente, as atividades da organização criminosa.

7)Conteúdo do acordo, sigilo, direito à não autoincriminação etc.

O acordo da colaboração, cujos termos ficarão em sigilo até o recebimento da denúncia, deverá ser feito por escrito e conter: a)o relato da colaboração e seus possíveis resultados; b)as condições da proposta do Ministério Público ou do delegado de polícia; c)a declaração de aceitação do colaborador e de seu defensor; d)as assinaturas do representante do Ministério Público ou do delegado de polícia, do colaborador e de seu defensor; e)a especificação das medidas de proteção ao colaborador e à sua família, quando necessário.

O acesso aos autos é restrito ao juiz, ao Ministério Público e ao delegado de polícia, como forma de garantir o êxito das investigações, assegurando-se ao defensor, no interesse do representado, amplo acesso aos elementos de prova que digam respeito ao exercício do direito de defesa, devidamente precedido de autorização judicial, ressalvados os referentes às diligências em andamento (art. 7º, §2°).

Diz a lei que nos depoimentos que prestar, o colaborador renunciará, na presença de seu defensor, ao direito ao silêncio e estará sujeito ao compromisso legal de dizer a verdade (art. 4°, §14). A rigor, trata-se de um dispositivo supérfluo, já que: a)a colaboração é uma voluntária confissão de crime, razão pela qual é incompatível com o direito ao silêncio; b)o nemo tenetur, como direito fundamental, é irrenunciável; c)se, firmado o acordo, o colaborador quiser se valer do direito ao silêncio ou mentir em juízo violará as condições do acordo, implicando rescisão, com provável perda dos benefícios pactuados; d)o simples descumprimento do negócio jurídico não configura infração penal, exceto se o colaborador imputar falsamente crime a outrem (art. 19 da Lei20).

8)Retratação e rescisão do acordo

O acordo de colaboração é precedido de tratativas no sentido da sua consumação, entre as partes e sem participação do juiz, de modo a preservar-lhe a imparcialidade. Até a homologação judicial do negócio jurídico em questão, as partes podem se retratar da proposta, caso em que as provas autoincriminatórias produzidas pelo colaborador não poderão ser utilizadas exclusivamente em seu desfavor (art. 4°, §10).

Como se trata de um ato lícito, que traduz o exercício puro e simples de um direito, a retratação implica o desfazimento de tudo que se produziu até então, razão pela qual os elementos de prova eventualmente colhidos não podem ser utilizados pela polícia judiciária ou pelo MP, seja contra o colaborador, seja contra os delatados21. O colaborador poderá, todavia, utilizá-las em seu favor.

Embora a lei diga que as partes podem se retratar da proposta (não do acordo), temos que até a homologação judicial do acordo é possível a retratação. Mas, uma vez homologado, não é possível a retratação. O que poderá ocorrer a partir da homologação judicial é a sua rescisão por descumprimento. A retratação é um ato lícito; e o descumprimento é um ato ilícito.

Justo por isso, os efeitos da rescisão são diversos: as provas produzidas com base na colaboração são válidas e podem ser licitamente utilizadas no processo.

A eventual rescisão não impede a celebração de futuros acordos.

9)Papel do juiz: decisões judiciais possíveis

Apesar de a lei dar um certo protagonismo às partes, notadamente ao Ministério Público, conferindo especial relevância ao acordo de colaboração, o juiz criminal tem um papel relevantíssimo no processo penal envolvendo a colaboração premiada.

Inicialmente, caber-lhe-á homologar o acordo de colaboração, deixando de fazê-lo ou determinando sua adequação quando estiver em desacordo com a lei.

Como a validade do acordo depende de ato jurisdicional, também a invalidação (rescisão), por violação das cláusulas contratuais, dependerá de decisão judicial, assegurado o contraditório prévio. Não é possível rescisão unilateral. Mas as partes podem, de comum acordo, revisar as cláusulas do contrato, submetendo-o à homologação judicial.

A decisão judicial homologatória do acordo é, em princípio, necessária para a concessão de todo e qualquer benefício previsto na lei, inclusive a imunidade de que trata do art. 4°, §4°, da Lei, quando o MP se compromete a não oferecer denúncia contra o colaborador, desde que não seja o líder da organização e seja o primeiro a prestar efetiva colaboração.

Salvo a hipótese de rescisão, o acordo, como ato jurídico perfeito que é22, deve ser respeitado pelos sujeitos processuais (MP, colaborador e o juiz etc.), a todos vinculando. Justo por isso, o juiz, ao preferir sentença, não pode simplesmente ignorá-lo ou alterar-lhe arbitrariamente as condições, sob pena de violar os princípios da legalidade e de lealdade processual, entre outros, devendo apenas, como manda a lei (art. 4°, §11), apreciar os termos do acordo homologado e sua eficácia.

Em suma, o juiz não pode ignorar ou violar o acordo; pode, isto sim, apreciar a eficácia e, portanto, conceder ou denegar, total ou parcialmente, os benefícios previstos no negócio jurídico. Assim, se o colaborador não cumprir, minimamente, as promessas acordadas, ser-lhe-á negado o prêmio ou prêmios previstos no acordo. Se o fizer apenas em parte, ser-lhe-á deferido o benefício proporcionalmente.

Mas, ainda que eventualmente discorde das condições do acordo de colaboração, por considerar, por exemplo, exagerados os prêmios legais concedidos, o juiz não poderá negá-los.

Apesar de competir-lhe apreciar a eficácia do acordo e de estar vinculado às respectivas cláusulas, o juiz poderá: 1)absolver o colaborador, se e quando faltar justa causa para a condenação (v.g., falta de prova, incidência de excludentes de tipicidade, de ilicitude ou de culpabilidade ou, ainda, causa extintiva de punibilidade); 2)condenar mais favoravelmente do que o acordo firmado (v.g., reconhecendo uma causa de redução de pena de 2/3, não de um 1/3, como firmado entre as partes); 3)dar mais do que o acordo, por exemplo, conceder o perdão judicial e absolver o colaborador, ainda que tenha pactuado causa de redução de pena ou similar.

No entanto, parece que não é possível condenação mais gravosa do que aquela proposta pelo MP em alegações finais, sob pena de violação ao princípio da correlação entre acusação e sentença e ao sistema acusatório. A proposição de pena feita pelo MP constitui, por conseguinte, o limite máximo da apenação23.

Cabe lembrar que o Ministério Público, a qualquer tempo, e o delegado de polícia, nos autos do inquérito policial, com a manifestação do Ministério Público, poderão requerer ou representar ao juiz pela concessão de perdão judicial ao colaborador, ainda que esse benefício não tenha sido previsto na proposta inicial (art. 4°, §2°).

10)Valor probatória das declarações do colaborador

Diz a lei que nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações do agente colaborador (art. 4°, §16). Assim, por mais verossímeis as declarações do colaborador, não constituem, isoladamente, prova suficiente para a condenação. Aliás, a própria pretensão de colaborar não terá seguimento se não estiver fundada em elemento de prova que a ampare, que a torne crível e aceitável e, pois, apta a desencadear uma investigação minimamente exitosa.

Tampouco é possível condenação com base num conjunto de delações convergentes.

A deflagração da ação penal e a eventual condenação exigem, portanto, prova que amparem as declarações do colaborador, a exemplo de documentos, contas bancárias, testemunha etc.

11)Direitos do colaborador

Além dos prêmios legais e de outros eventualmente reconhecidos no acordo de colaboração, são direitos do colaborador (art. 5°): 1)usufruir das medidas de proteção previstas na legislação específica; 2) ter nome, qualificação, imagem e demais informações pessoais preservados; 3) ser conduzido, em juízo, separadamente dos demais coautores e partícipes; 4)participar das audiências sem contato visual com os outros acusados; 5) não ter sua identidade revelada pelos meios de comunicação, nem ser fotografado ou filmado, sem sua prévia autorização por escrito; 5)cumprir pena em estabelecimento penal diverso dos demais corréus ou condenados.

1Art. 8º Será de três a seis anos de reclusão a pena prevista no art. 288 do Código Penal, quando se tratar de crimes hediondos, prática da tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins ou terrorismo.

Parágrafo único. O participante e o associado que denunciar à autoridade o bando ou quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terá a pena reduzida de um a dois terços.

2

Nesse sentido: Lei nº 8.072/1990 (art. 8º) – Lei dos Crimes Hediondos; Lei nº 11.343/2006 (art. 41) – Lei de Drogas; Leis nº 7.492/1986 (art. 25, §2°) – Lei dos Crimes contra o sistema financeiro nacional; Lei nº 8.137/1990 (art. 16) – Lei dos crimes contra a ordem tributária; art. 159 do Código Penal; Lei nº 9.613/1998 (art. 1°, §5°) – Lei de lavagem de dinheiro; Lei nº 9.807/1999 (arts. 13 e 14) – Lei de Proteção a vítimas e testemunhas ameaçadas; Lei nº 12.529/2011 (art. 87); Lei n° 12.846/2013 (art. 16).

3Ver Paulo Queiroz. Direito penal, parte geral. Salvador: juspodivm, 2018.

4

 Art. 159 – Sequestrar pessoa com o fim de obter, para si ou para outrem, qualquer vantagem, como condição ou preço do resgate.

        Pena – reclusão, de oito a quinze anos.

§ 4º – Se o crime é cometido em concurso, o concorrente que o denunciar à autoridade, facilitando a libertação do sequestrado, terá sua pena reduzida de um a dois terços.

5

 Art. 41.O indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais coautores ou partícipes do crime e na recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação, terá pena reduzida de um terço a dois terços.

6

 Circunstâncias atenuantes

        Art. 65 – São circunstâncias que sempre atenuam a pena:

        III – ter o agente:

        b) procurado, por sua espontânea vontade e com eficiência, logo após o crime, evitar-lhe ou minorar-lhe as consequências, ou ter, antes do julgamento, reparado o dano;

        d) confessado espontaneamente, perante a autoridade, a autoria do crime.

7

 Arrependimento posterior

Art. 16 – Nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, por ato voluntário do agente, a pena será reduzida de um a dois terços.

 

8Nesse sentido, José Carlos Porciúncula Neto. Inconstitucionalidades e inconsistências dogmáticas do instituto da delação premiada (art. 4º da Lei 12.850/13), disponível em emporiododireito, acessado em 4/9/2017. E Cezar Roberto Bitencourt e Paulo César Busato. Comentários à lei de organização criminosa. São Paulo:Saraiva, 2014.

9Daí chamar-se também confissão delatória.

10Nesse sentido, Jorge de Figueiredo Dias, favorável aos acordos sobre a sentença, considera que a confissão constitui verdadeira conditio sine qua non do acordo sobre a sentença, seu autêntico pressuposto. Acordos sobre a sentença em processo penal. Porto: Conselho Distrital do Porto, 2011.

11Kelsen, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução: João Baptista Machado. Martins Fontes: São Paulo, 2003, p. 71.

12

 Art. 4°, §6o: O juiz não participará das negociações realizadas entre as partes para a formalização do acordo de colaboração, que ocorrerá entre o delegado de polícia, o investigado e o defensor, com a manifestação do Ministério Público, ou, conforme o caso, entre o Ministério Público e o investigado ou acusado e seu defensor.

13

Art. 271.  Ao assistente será permitido propor meios de prova, requerer perguntas às testemunhas, aditar o libelo e os articulados, participar do debate oral e arrazoar os recursos interpostos pelo Ministério Público, ou por ele próprio, nos casos dos arts. 584, § 1o, e 598.

14

 Nesse sentido, Fredie Didier (A colaboração premiada, natureza jurídica e controle de validade, 2016): Em síntese, a colaboração premiada prevista na Lei n. 12.850.2013 é (i)ato jurídico em sentido lato, já que a exteriorização de vontade das partes é elemento cerne nuclear do seu suporte fático; (ii) é negócio jurídico, pois a vontade atua também no âmbito da eficácia do ato, mediante a escolha, dentro dos limites do sistema, das categorias eficaciais e seu conteúdo; (iii) é negócio jurídico bilateral, pois formado pela exteriorização de vontade de duas partes, e de natureza mista (material e processual), haja vista que as consequências jurídicas irradiadas são de natureza processual e penal material; (iv) é contrato, considerando a contraposição dos interesses envolvidos.

15

 Art. 13. Poderá o juiz, de ofício ou a requerimento das partes, conceder o perdão judicial e a consequente extinção da punibilidade ao acusado que, sendo primário, tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e o processo criminal, desde que dessa colaboração tenha resultado:

I – a identificação dos demais coautores ou partícipes da ação criminosa;

II – a localização da vítima com a sua integridade física preservada;

III – a recuperação total ou parcial do produto do crime.

Parágrafo único. A concessão do perdão judicial levará em conta a personalidade do beneficiado e a natureza, circunstâncias, gravidade e repercussão social do fato criminoso.

16No mesmo sentido, Luiz Flávio Gomes e Marcelo Rodrigues da Silva. Organizações criminosas e técnicas especiais de investigação. Salvador: editorajuspodivm, 2015, p.215.

17

 § 4o  Nas mesmas hipóteses do caput, o Ministério Público poderá deixar de oferecer denúncia se o colaborador:

I – não for o líder da organização criminosa;

II – for o primeiro a prestar efetiva colaboração nos termos deste artigo.

 

18§ 5o  Se a colaboração for posterior à sentença, a pena poderá ser reduzida até a metade ou será admitida a progressão de regime ainda que ausentes os requisitos objetivos.

19Essa tese é defendida por Cezar Bitencourt e Paulo Busato no livro já citado.

20

 Art. 19.  Imputar falsamente, sob pretexto de colaboração com a Justiça, a prática de infração penal a pessoa que sabe ser inocente, ou revelar informações sobre a estrutura de organização criminosa que sabe inverídicas:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

21

 Nesse sentido, Andrey Borges de Mendonça. A colaboração premiada e a nova Lei do Crime Organizado, in Revista eletrônica do Ministério Público Federal, v. 4, 2013.

22

 Lei 4.657/42, art. 6º: A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.

§ 1º Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou.

 

23De modo similar, Figueiredo Dias, in Acordo sobre a sentença, citado.

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