COCULPABILIDADE E LOUCURA NA ABSOLVIÇÃO DE SEVERINO DO ARACAJU

18 de dezembro de 2013

 

José Osterno Campos de Araújo

Procurador Regional da República

Mestre em Ciências Criminais

Professor do UniCEUB

Severino do Aracaju, personagem-cangaceiro de Ariano Suassuna, em o “Auto da Compadecida1, não matou cinco pessoas, somente na cidade de Taperoá: o bispo, o padre, o sacristão, o padeiro e sua mulher?

2. Por que razão foi, então, absolvido?

3. No Tribunal Celeste, Manuel/Jesus lavrou a sentença, absolvendo sumariamente a Severino do Aracaju: “A Compadecida – Quanto a Severino e ao cabra dele… Manuel – Quanto a esses, deixe comigo. Estão salvos. Encourado – É um absurdo contra o qual… Manuel – Contra o qual já sei você protesta, mas não recebo seu protesto. Você não entende nada dos planos de Deus. Severino e o cangaceiro dele foram meros instrumentos de sua cólera. Enlouqueceram ambos, depois que a polícia matou a família deles e não eram responsáveis por seus atos. Podem ir para ali. [Severino e o Cangaceiro abraçam os companheiros e saem para o céu]2.

4. Teria o Justo julgador invocado, para a absolvição, o princípio da coculpabilidade? E, também, considerado que os males impostos pela sociedade a Severino o teriam levado à demência e consequente não responsabilização penal, por sua inimputabilidade?

5. Haver-se-á de dizer: mas o princípio da coculpabilidade não elide a responsabilidade penal, tão somente a atenua, na medida em que consiste em uma divisão de culpabilidade entre sociedade e criminoso, que teria sido por aquela oprimido, espoliado, injustiçado, enfim, abandonado à própria sorte.

6. É verdade. Mas também não é menos verdadeira a conclusão de que a absolvição, ao (pretensamente) invocar a coculpabilidade, o fez tão somente para, partindo desta compartição de culpabilidade, tê-la como gestante da loucura de Severino, a qual, no molde do artigo 26 do Código Penal, detém o condão de isentar de pena o inimputável, com sua consequente absolvição.

7. Acerca do princípio da coculpabilidade, Zaffaroni assim se manifesta: “Todo sujeito age numa circunstância determinada e com um âmbito de autodeterminação também determinado. Em sua própria personalidade há uma contribuição para esse âmbito de autodeterminação, posto que a sociedade – por melhor organizada que seja – nunca tem a possibilidade de brindar a todos os homens com as mesmas oportunidades. Em consequência, há sujeitos que têm um menor âmbito de autodeterminação, condicionado desta maneira por causas sociais. Não será possível atribuir estas causas sociais ao sujeito e sobrecarregá-lo com elas no momento da reprovação de culpabilidade. Costuma-se dizer que há, aqui, uma ‘co-culpabilidade’, com a qual a própria sociedade deve arcar. Tem-se afirmado que este conceito de co-culpabilidade é uma idéia introduzida pelo direito penal socialista. Cremos que a co-culpabilidade é herdeira do pensamento de Marat (ver n. 118) e, hoje, faz parte da ordem jurídica de todo Estado Social de Direito, que reconhece direitos econômicos e sociais, e, portanto, tem cabimento no Código Penal mediante a disposição genérica do art. 663.

8. Noutro trecho, Zaffaroni afirma que Jean Paul Marat, médico e revolucionário francês, partindo da tese contratualista, faz a si mesmo a pergunta: “… em tal situação, os indivíduos que não obtinham da sociedade mais do que desvantagens estavam obrigados a respeitar as leis”, para, em seguida, responder categoricamente: “’Não, sem dúvida. Se a sociedade os abandona, retornam ao estado de natureza e recobram pela força, os direitos que somente alienaram para obter vantagens maiores; toda autoridade que se lhes oponha será tirânica e o juiz que os condene à morte não será mais que um simples assassino’4.

9. À parte os exageros da concepção de Marat, a pertinência da coculpabilidade, como juízo de reproche, a um só tempo, ao criminoso e à sociedade, resta homenageada em proficiente texto de Ana Carolina de Araújo Silva, seja quando afirma: “Este preâmbulo teórico pretende fundamentar a concepção de que, ao promover a absolvição do cangaceiro Severino de Aracaju, Suassuna busca justificativas bastantes convincentes junto ao imaginário do co-enunciador para que este seja levado a também absolver o bandido. E, mais do que isso, passar de simples receptor a réu, pois, depois do julgamento finalizado, fica explícito que muitos dos pecados praticados pelo homem (como os inúmeros assassinatos que Severino cometeu ou as mentiras de João Grilo) foram consequências de injustiças causadas pelo próprio homem5; seja, ainda, quando – diz Ana Carolina – Manuel/Cristo põe a sociedade no banco dos réus, pelos crimes de Severino: “É sob esse ponto de vista que a absolvição de Severino de Aracaju é um tapa no rosto da classe dominante. Por mais violentos que tenham sido os atos do cangaceiro, fica clara a posição de Suassuna de que toda sua ira é fruto da pobreza, é consequência da violência social vivida diariamente pelos pobres e miseráveis, esquecidos pelas ações do governo, e que contam com uma justiça paralela para manterem-se vivos. Ao ser defendido pelo próprio Manuel/Cristo, Severino vai de acusado a vítima em menos de dois segundos. Manuel faz sentar no banco dos réus, então, toda a sociedade que ignora a situação de pobreza em que vive uma boa parcela da humanidade6.

10. Assentada a coculpabilidade, resta agora o fundamento último da absolvição: a loucura de Severino, acarretada – é o próprio Manuel/Jesus quem diz: “Severino e o cangaceiro dele foram meros instrumentos de sua cólera. Enlouqueceram ambos, depois que a polícia matou a família deles e não eram responsáveis por seus atos7 pela violência, opressão e abandono da sociedade, que, por certo, tinha a Severino como um ‘Zé-Ninguém’, ou seja, alguém posto à margem.

11. Forrou-se, pois, o Tribunal do Juízo Final na inimputabilidade de Severino, para absolvê-lo sumariamente, enviando-o, então, para o céu, sendo que referida inimputabilidade, como causa de inculpabilidade, que afasta o crime, vem definida da seguinte forma no artigo 26 do Código Penal Brasileiro: “Art. 26. É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”.

12. Manuel/Jesus, em seu julgamento, considerou que Severino – por força de doença mental, ocasionada pela sociedade – era completamente incapaz de entender a ilicitude daquilo que praticava e, na hipótese de ter este entendimento, não tinha, no entanto, condições de determinar seu comportamento de acordo com a ciência que tivesse do ilícito.

13. Foi, então, Severino absolvido. Condenada foi a sociedade, em que o cangaceiro viveu e morreu.

1 Suassuna, Ariano. Auto da compadecida. 34. ed. 6. imp. Rio de Janeiro: 2000. Todos os demais textos da referida obra, aqui transcritos, referem-se à referida edição.

2Ob. cit., p. 179/180.

3 Zaffaroni, Eugenio Raúl; Pierangeli, José Henrique. Manual de direito penal – parte geral. 6. ed. rev e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p.525.

4Ob. cit., p. 232.

5 Silva, Ana Carolina de Araújo. Análise da absolvição do cangaço em o auto da compadecida. In: http://www2.faac.unesp.br/celacom/anais/Trabalhos%20Completos/GT8%20-%20Literatura%20e%20Comunica %C3%A7%C3%A3o%20-%20Ideias%20e%20A%C3%A7%C3%B5es/58.Ana%20Carolina_An%C3%A1lise%20da%20absolvi%C3%A7%C3%A3o%20do%20anti-her%C3%B3i%20.pdfp. 13.

6Ob. cit., p. 17.

7 Suassuna, Ariano. Auto da compadecida. 34. ed. 6. imp. Rio de Janeiro: 2000, p. 180.

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Comentários

  1. Excelente! No âmago de uma sociedade em que juristas aplaudem por meio das cortinas o Estado Policial, esta página é um refrigério na contramão do discurso massificado e asno dos esquematizados jurídicos. Parabéns Professor Paulo.

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