Carta a um juiz criminal

12 de maio de 2005

Exmo. Sr. Dr. Juiz:

Acabo de tomar ciência, na condição de membro do Conselho Penitenciário da Bahia, do teor de uma sentença penal proferida por V.Exa., em que Maria Sueli de tal foi condenada à pena de 03 anos de reclusão, em regime fechado, pela prática do crime de tráfico ilícito de droga (Lei 6.368/76, art. 12), visto conduzir, dentro da cavidade vaginal, e durante visita que faria a seu companheiro na penitenciária Lemos Brito, 1,0 grama de cocaína e “certa quantidade de maconha”. Este o motivo da carta que ora faço chegar às mãos de V.Exa., para expressar minha preocupação.

É que, ao aplicar a lei tão implacavelmente, V.Exa., segundo me parece, não se louvou no melhor Direito e, mais grave, embora imbuído certamente dos melhores propósitos, acabou por consagrar uma decisão que não é justa, afinal, deixou de tomar em conta princípio elementar do
Direito: o Princípio da Proporcionalidade. Sim, porque ninguém em sã consciência considerará que este “pobre-diabo”, dada a manifesta insignificância da ação, mereça, de fato, tão enérgico castigo. Aliás, como V.Exa. poderá perceber, tal pena corresponde ao máximo da pena cominada ao homicídio culposo, a três vezes a pena mínima prevista para a lesão corporal grave (CP, art. 129, §1°) e ao triplo da pena máxima correspondente à lesão corporal culposa (?), condutas incontestavelmente bem mais graves. Demais disso, já não teria sido suficiente a humilhação de ser submetida a tão constrangedora revista, de ser presa, processada, de ficar privada da companhia de seus filhos, companheiro e entes queridos?

Por outro lado, ao assinalar (na sentença condenatória) que o “motivo ensejador da prática abominável do delito imputado a acusada, é deveras nefasto à sociedade, o que impõe a sua segregação social, pelo princípio da recuperação e posterior reintegração da delinqüente ao meio social”, V.Exa. não tem em conta as atuais condições das nossas penitenciárias, que, longe de ressocializar, dessocializam, longe de reeducar, corrompem e embrutecem. Aliás, como deve saber V.Exa., a idéia mesma da “ressocialização” é tida hoje como um “mito”, uma idéia, enfim, inteiramente desacreditada, afinal não se pode pretender educar alguém para liberdade em condições de não-liberdade (Muñoz Conde).

Semelhantemente, quando V.Exa. afirma que se trata de uma “ação abominável e nefasta à sociedade”, dá a impressão de estar se referindo a um outro caso, que não aquele objeto do processo, pois, onde se vê tal coisa, dever-se-ia enxergar, data vênia, algo de dramaticamente humano, penoso e absolutamente irrelevante do ponto de vista social, a recomendar não o castigo, mas o perdão.

Bem sei que V.Exa. poderia redargüir, argumentando que se há injustiça, a injustiça reside na lei, não na sua sentença. Semelhante objeção, porém, não procederia, visto que se olvidariam duas questões fundamentais: primeiro, que, na aplicação da lei, é dever do juiz fazê-lo conforme o sistema de valores e princípios constitucionais, dentre os quais avulta o princípio da proporcionalidade, segundo o qual, o direito penal, em razão de seu caráter inevitavelmente traumático, cirúrgico e negativo (García-Pablos), não deve intervir senão em casos especialmente graves e socialmente danosos, de sorte que condutas insignificantes são, em princípio, penalmente atípicas. Nesse sentido, recente decisão do STJ: “A apreensão de quantidade ínfima de droga – 0,25g de cocaína – sem qualquer prova de tráfico, não tem repercussão penal, à vista da míngua de lesão ao bem jurídico tutelado, enquadrando-se o tema no campo da insignificância” – Habeas-corpus concedido (HC n° 8.020/RJ, 6ª Turma, relator Min. Fernando Gonçalves, j. 25.03.99, DJU 13.06.99, p. 227). Caberia lembrar, ainda, que a doutrina majoritária (Flávio Gomes, Damásio de Jesus etc.) e a jurisprudência dominante entendem que o tráfico ilícito de entorpecentes admite a substituição da pena de prisão por “penas alternativas”, desde que não seja superior a 04 anos, como neste caso. E V.Exa. sequer faz referência à possibilidade de substituição…

Finalmente, a obrigação primeira do juiz não é com a lei (ordinária), mas com a Constituição, âlfa e ômega do ordenamento jurídico, sob pena subversão da hierarquia das normas. Por isso é que Ferrajoli (Derechos y Garantias) assinala, com toda razão, que a missão do juiz já não é, como no velho paradigma positivista, sujeição à letra da lei, qualquer que seja o seu significado, senão sujeição à lei enquanto válida, é dizer, coerente com a Constituição. E no modelo constitucional-garantista, a validez já não é um dogma associado à mera existência formal da lei, razão pela qual a interpretação judicial da lei é também sempre um juízo sobre a lei mesma, que corresponde ao juiz junto com a responsabilidade de eleger os únicos significados válidos, ou seja, compatíveis com as normas constitucionais substanciais e com os direitos fundamentais estabelecidos pelas mesmas.

Esteja certo, porém, que não o censuro por coisa alguma, nem me cabe fazê-lo, mesmo porque, para tão severa decisão, que condenou esta pobre mulher (agora duplamente vitimada) a 03 anos de cárcere, concorreram, certamente, um promotor público implacável e um advogado pouco combativo e desinteressado. Desejo, no entanto, que V.Exa., refletindo, humildemente, sobre todas essas questões (visto ser a humildade a primeira das virtudes de um bom juiz), possa vir, em casos futuros, a julgar com mais eqüidade, com mais humanidade, ainda que tal não coincida com a letra fria da lei, pois, como dizia Chaplin, “não sois máquinas, homens é que sois” !

Cordialmente,

PAULO QUEIROZ – Professor (UCSAL) e Procurador da República

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20 Comentários

  1. Dr. Paulo:

    Parabéns!

    Deixar de encarar pessoas com baixo nível de instrução, sem oportunidades, de etnias diferentes, como possíveis delinqüentes já será um bom começo. Prevenir o crime, acredito, não é equipar as Polícias Militares e Civis, antes, e, sobretudo, é entender que tal prevenção deverá partir do Ministério da Cultura, da Educação, do Desenvolvimento Social, dos programas de habitação, saneamento básico, distribuição de renda e de uma séria formação religiosa. “Quanto maior for o número dos que entenderem e tiverem nas mãos o sagrado código das leis, menos freqüentes serão os delitos.” (Cesare Beccaria)
    Uma vez que tiver proporcionado ampla oportunidade de uma vida digna aos seus cidadãos, o Estado então terá razões legítimas para punir um infrator. Convém, em certos casos, sermos bons em vez de justos (Romanos 5:7). Uma arma, por si só, não causa um crime!

  2. Dr. Paulo Queiroz, sou advogado em SP, com todo o respeito, é lamentável que um juiz de direito seja criticado por apenar de forma proporcional e legal uma senhora que se dispõe a “enfiar” droga no corpo e com isso FRAUDAR a vigilância penitenciária.
    Seu crime não foi apenas carregar pequena porção de entorpecente, mas tentar introduzí – lo dentro do caótico Sistema Penal.
    São nessas “cavidades vaginais” que entram os celulares que possibilitaram os ataques do PCC em 2005 e 2007 em SP. São essas mulheres que transportam a droga que vai ser vendida em continuidade delitiva dentro da própria cadeia.
    Fomentam não apenas o tráfico, como fortalecem facções criminosas, minam a autoridade do Sistema Penal e contribuem para a violência intra – cárcere fornecendo a droga que enriquece o traficante e ao mesmo tempo gera dívidas para os verdadeiros “pobre – diabos” que são obrigados a assumir crimes, se vincular à quadrilhas e às vezes até se prostituir, quando não acabam esvicerados por uma faca artesanal porque não conseguem sustentar o próprio vício.
    Como membro do Conselho Penitenciário o senhor deveria lutar para a formação de um sistema de recuperação do detento viciado almejando sua recuperação e não em defender a introdução de ilícitos dentro do muros da prisão, o que, na melhor das hipóteses enfraquece e ridiculariza o mesmo sistema que o senhor alegar defender.

  3. Danilo Garcia,
    ao meu ver o Direito Penal não admite-se analogia, e dizer que aquela mulher, vitmia de uma severa sentença, vai influênciar nos ataques do PCC e demais, pois devemos trabalhar com a proporcionalidade e a individualidade, garanto a você que as “cavidades vaginais” não é o único meio de chegar dentro dos presidios celular, drogas, ar condicionado, televisão, computador e até tv pro assinatura via satélite. A critíca do grandioso Professor Paulo Queiroz não é para gerar impunidade, mas sim que a punição seja proporcional ao delito, e garanta os direitos fundamentais do detento.
    Belo texto professor

  4. verve iluminada….haure a realidade fática com rotulação precisa….jogas as palavras com vocação….prende o leitor….
    Estava com sono. Passou. É raro achar escrito assim…..

  5. Depois que os “pobres diabos” usuários de drogas passaram a ser tratados como questão sanitária, vejam as cracolándias por ai, então, o que será de nós com essas teorias garantistas para liberar geral até traficantes? Vamos acordar, doutores, pois a segurança das academias e a doçura do papel em branco escrito numa confortável poltrona não é o dia-a-dia da sociedade brasileira. A violência graça. Parabéns ao Judiciário, sinto muito ao Ministério Público.

  6. Preciso de ajuda! meu marido a 17 anos atrás se envolveu em um sequestro e ficou 4 anos preso onde pegou tuberculose e quase morreu…saiu de lá por força de um habeas corpus e foi viver a vida…hj em dia é um homem trabalhador, construiu uma nova vida com sua família. A 30 dias atrás estava trabalhando e foi preso em seu trabalho…seus patrões colocaram um advogado que tentou novo habeas corpus que foi negado por falta de informações. Agora ele está num presídio, é justo tirar uma pessoa que mudou de vida do seu trabalho pra ficar mofando na cadeia! porque a nossa justiça é tão lenta! dizem que leva quase 20 dias só pra desarquivar um processo! Será que ele ter mudado de vida não valeu a pena, Lá não é mais o lugar dele, ele é um trabalhador e queria que fosse tratado como tal…me dicam o que posso fazer pra ajudar meu marido pra sair daquele inferno…não o vejo a quase um mês pois só posso visitá-lo quando ficar pronta a carterinha…as autoridades deviam tratar com mais
    consideração os detentos e seus familiares, afinal nós também somos cidadãos brasileiros!

  7. Parabéns ao Doutor, poucos é desta coragem. Mulher realmente errou, cometeu sim o delito, mas poderia responder em liberdade, não é somente desta forma que a droga e celulares entram em presídios. Basta ter de R$ 2000,00 a R$ 3500,00, que eles próprios colocam para dentro. Acordar para realidade bom. as salas VIPs dos irmãos ficam abertas. Suas esposas entram como princesas, enquanto as outras como faveladas.

  8. meu irmão tava preso foi solto na condicional quero que ele venha morar comigo mais para isso tenho que manda uma carta para a juiza da cidade que ele ta so sei que tenho que fazer a carta ir no cartorio reconher firma mais ñ sei como escrevo a carta por favor mim ajude estou morando em juiz de fora quero muito que meu irmão venha pra cá para trabalhar como escrevo essa carta min ajude por favor meu cel 0317388868622

  9. Professor, por que criticar somente o juiz, e não promotor que propôs a ação penal? Será corporativismo? Sem a denúncia, não haveria sentença. Além disso, transportar drogas para dentro de um presídio não é, data venia, insignificante. O comportamento é socialmente perigoso e o grau de reprovabilidade do comportamento é grande. SMJ.

  10. queria mandar uma carta para um juiz do tribunal de menores de vila franca de xira.
    onde tanho o nimero do artigo de lei e queria pedir-lhe se podia deixar a minha irma de 9anos vir passar as ferias da escola comigo. a minha irma encontra-se no colegio.
    fico a espera de uma ajuda e obrigado

  11. Dr. Parabéns pela carta, muitos acham que a família passa por isso somente para enricar PCC, traficantes etc…, esquecem que la tem muitos viciados e com isso gostaria de saber qual é o trabalho que o governo presta p/ essas pessoas.
    Quando eles estão internados em uma clinica eles tem medicamentos. La dentro só resta p/ aqueles que gostam usar p/ passar mais rápido o dia, por que nossa justiça é lenta.
    Estive preso a pouco tempo conheci o inferno fui maltratado no transito pelos policiais mais dentro do CDP não tive nem uma ofensa, pelo contrario quando eu cheguei deram roupas, alimento e passaram o dia-dia da cadeia e como a linguagem deles me chamavam de Ze povinho por que sou trabalhador.
    Passados alguns dias fiquei muito doente e o atendimento medico não existe fiz um teste de escarro que ate hoje não fiquei sabendo do resultado. Perdi 16 Kilos minha família vinha me visitar e não me reconhecia.
    Como li em alguns depoimentos a responsabilidade sempre é da droga né, pois é ela que acalma os ânimos daqueles que gostam, graças a Deus nunca usei antes de entrar la, la dentro também não usei, ate hoje não uso, la dentro nunca me forçaram a usar ou ate mesmo fazer o que eu não gostaria.
    Pelo menos aqui no estado de São Paulo a cadeia esta em paz e o lema é o seu espaço começa quando termina o do seu próximo.
    Pode ter certeza no dia que acabar o crime no alto escalão a criminalidade e os viciados diminuirá por que voce liga a TV e o que passa no jornal, Deputado Tal levou tantos milhões de obras de hospitais, colegios, etc…, isso infelizmente nunca vai acabar ai pergunto a alguns ignorantes por que aquela mulher estava fazendo o errado ?
    Eu mesmo respondo p/ a ciência de todos:
    Ela esta apenas defendendo a sua sobrevivência e de sua família, pois talvez ela seja descriminada por que é mulher de detento/ viciado.
    Qual foi a alternativa dada p/ melhoria dela e de sua família ?
    R: 3 anos de regime fechado e uma faculdade para quando sair fazer coisas piores, sabe por que la dentro prioridade é jornal e todos acompanham as safadezas feitas por aqueles que tinham que dar exemplos.
    Dr. Danilo com todo respeito a vossa senhoria, vamos sim tentar mudar para melhor a vida de todos, vai ate a favela e verifica se la tem alguém precisando de remédio, comida, roupa, uma palavra…, uma oportunidade.
    Com isso o Dr. vai entender que o crime que eles infelizmente praticam é para mudar a desigualdade social em que vivemos.
    Enquanto muitos deputados ganham acima R$ 5.000,00 muitos pais de família ganha 01 salario minimo, enquanto um gari tem que ter o 1º grau completo e pagar para fazer um concurso e aguardar ser chamado, o politico basta apenas ter conhecimento c/ pessoas para entrar e ganhar o mesmo valor e ai conhecer o mundo deles.
    Como se diz muitos vão fazer o chamado pé de meia, pois sabe que vão trabalhar uma vida e não vai levantar a quantia recebida durante 4 anos.
    Vamos tentar olhar mais para população em modo geral ninguem consegue viver uma vida digna c/ 01 salario minimo, ate por que a chamada oportunidade quando é feita a eles (presos) 01 salario minimo não consegue pagar um advogado e com isso ficam mofando na cadeia esperando por um advogado do estado.
    Quando finaliza o processo dependendo do caso ainda tem a estadia para pagar e fora os impostos normais do dia-dia que vossa senhoria sabe que é absurdo no nosso País.

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